Nem foi ainda consolidado o último acordo ortográfico e o Senado nos propõe outra tomada de três pinos. Pois reformas ortográficas e tomadas de três pinos em muito se parecem. Inocentes e inócuas inovações, à primeira vista, servem para locupletar as burras dos manipuladores da indústria do inútil.
Leio nos jornais que o projeto “Simplificando a Ortografia”, idealizado por um tal professor Ernani Pimentel, ganhou destaque na Comissão de Educação da casa. O objetivo do projeto, segundo o professor, é criar uma língua portuguesa com um menor número de regras, para tornar seu aprendizado mais rápido e eficaz.
Ou seja, ainda não é consenso o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em 1990 por Brasil, Portugal, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe, e mais tarde Timor-Leste, e já temos mais uma reforma. Fruto dos sumos bestuntos da Academia Brasileira de Letras (leia-se Antonio Houaiss, que já tinha pronto seu dicionário na nova ortografia proposta) e da Academia das Ciências de Lisboa, o acordo entrou em vigor no início de 2009 no Brasil e em 13 de maio de 2009 em Portugal, embora os lusos, os pais da língua, até hoje hesitem em adotá-lo. Foi estabelecido nos dois países um período de transição em que tanto as normas anteriormente em vigor como a introduzida por esta nova reforma são válidas: esse período era de três anos no Brasil (foi estendido agora para 2016) e de seis anos em Portugal.
Os brasileiros, como que obedecendo uma ordem divina, adotaram o acordo no dia seguinte, sem que nenhuma sanção recaísse sobre quem não o adotasse. Que os editores se apressassem em ratificá-lo, entende-se: muda-se uma letrinha cá, outra acolá, retira-se o trema, o hífen e alguns acentos cá e lá, e bilhões de reais vão para a indústria editorial. Mais ou menos como a tomada de três pinos.
O que não se entende é como a imprensa e as universidades se dobraram imediatamente às novas regras, sem ter por quê: se não há sanção para quem descumpre uma lei, tanto faz como tanto fez cumpri-la ou não.
Vamos ao novíssimo projeto. Entre as medidas estudadas pela Comissão, está a eliminação do “x” com som de “z” e a substituição do fonema “ch” pelo “x”. Desta forma, palavras como “exibir” e “chefe” passariam a ser escritas “ezibir” e “xefe”. As sílabas “ce” e “ci” também seriam extintas: censura passaria a ser “sensura” e palavras cidade seria escrita “sidade”. Palavras iniciadas em “qu” também receberiam alterações: uma das propostas é eliminar o “u”, o que transformaria palavras como “queijo” e “qualidade” em “qeijo” e “qalidade”.
Segundo o professor Ernani, a necessidade da simplificação ortográfica reside principalmente no fato da grande dificuldade de lecionar a língua. Traduzindo: leia-se má formação de alunos e mesmo de professores que, por não cultivarem o hábito da leitura, não conseguem escrever corretamente.
De acordo com o autor do projeto, os professores gastam atualmente 400 horas para ensinar ortografia. Após a reforma, esse tempo passaria para 150: “com 150 horas você pode ensinar com muito mais eficiência o que 400 horas não ensinam. E isso significa muito dinheiro. Só pra você ter uma ideia, essas 250 horas significam 2 bilhões (…) por ano em educação e economia, porque você pode tá aplicando em outras coisas que o aluno precisa aprender”, afirmou.
Quanto bihões custará a segunda reforma, proposta apenas cinco anos após a primeira? O professor Ernani e o Senado estão brincando com o dinheiro dos cidadãos.
O projeto de simplificação ainda prevê eliminar o “h” no início de palavras como “hoje” e “hora” (que passariam a ser escritas “oje” e “ora”).
“Então, como é que se resolve esse problema da dúvida do h inicial?” – pergunta-se o professor – “Existe uma regra básica que é: consoante não pronunciada, não se escreve. Então joga-se todo h inicial fora e aí você vai ter o que o italiano já fez. (…) E então você não tem mais dúvidas para escrever. E isso é economia, é qualidade de vida de quem tá escrevendo”, afirma o professor. Sem notar que com a água do balde vai junto a criança: perde-se a noção de etimologia. Segundo a novíssima ortografia, escreveríamos então omem, otel, oje, umor, flexa, maxo bluza, ezame, êzito, amasar, asúcar, moso, ausílio, múzica, deuzes e daí por diante. Uma festa para os analfabetos.
Sem falar que a proposição do professor Ernani nada tem de original. A primeira proposta de reforma semelhante foi feita ainda no século XIX, pelo gaúcho Qorpo Santo. Republico abaixo crônica que escrevi há sete anos. O que talvez diga algo sobre as inspirações do professor. A propósito, leia Qorpo Santo de Corpo Inteiro: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/qorposanto.html
NÓS, QORPO E A REFORMA *
O qe doe, o qe eizaspera, o qe qonfrange ainda a vontade a mais forte – é ter lutado inseçantemente qontra os autores de tantos qrimes: qonseguido auciliado de tantos outros qe igualmente padecião – derribar este poder qorruto: essas autoridades immoraes qe o eizersião: haverem subido ou occupado seus distintos lugares de tão grande número daqeles qe os qombaterão; q os derribarão; e ainda assim – estarem sendo protelados nossos direitos por alguns de taes qriminosos há mais de trez, há mais de quatro anos. (Novembro 8 de 1868)
Que assim escrevia, há praticamente dois séculos atrás, era José Joaquim Campos Leão Qorpo Santo (1829-1883). Gaúcho de Triunfo, interior do Rio Grande do Sul, Qorpo Santo foi vereador, delegado de polícia, professor, jornalista, dramaturgo. Em 1861, começou a escrever sua Ensiqlopédia ou seis mezes de huma enfermidade, de onde extraí o texto supra.
Suas peças nunca foram encenadas durante sua vida. Foi tido como louco e não era para menos. Consta que trancou a porta de sua casa e entrava pela janela. Sabe-se também que andou arrastando sua mulher pelos cabelos pela Rua da Praia. Não via objeção alguma em mulheres no serviço militar.
Enquanto os homens lutavam, as mulheres deitavam-se e pariam novos soldados. Seu teatro só foi descoberto, um século depois, pelos esforços de Aníbal Damasceno Ferreira, hoje professor de cinema na PUC de Porto Alegre.
Há toda uma intriga sórdida em sua ressurreição. Um professor de literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Guilhermino César da Silva, que escreveu uma História da Literatura do Rio Grande do Sul, na qual ignorou solenemente a existência de Qorpo Santo, pretendeu roubar a descoberta de Aníbal Damasceno, quando o dramaturgo se tornou nome nacional.
Mas não era disto que pretendia falar, e sim da reforma ortográfica proposta por Qorpo ao escrever. Em seus textos, ela é apresentada de forma incoerente, nem sempre mantendo uma unidade. Em suma, o som de cá do C passa a ser assumido pela letra Q. O C assume o som de S sibilante, embora o S também permaneça com a mesma função. Qorpo também admite o Ç como sibilante. Vê-se que o maluco da Rua da Praia intuiu a necessidade de uma reforma ortográfica, já no final do século XIX, mas não chegou a sistematizá-la. No entanto, sem nem sonhar com Internet, Qorpo Santo antecipou, há dois séculos, o uso do Q no internetês.
Nos anos 60, em Dom Pedrito, sem nunca termos ouvido falar de Qorpo Santo - que naquela época permanecia envolto pelo pó de algumas raras bibliotecas - três ou quatro estudantes de 15 e poucos anos, elaboraram um novo sistema ortográfico nacional. Eu era um deles, mas não o autor da reforma. Este mérito é de Danilo Morales, meu colega de ginásio, científico e mais tarde Filosofia.
Eliminamos algumas letras inúteis do sistema ortográfico. O C tinha sempre o som de K, o S de sibilante, e nunca assumia o som de Z, quando entre vogais. O Z assumia seu próprio som, como em rezar, e também o de X, como em exame. O X ficava apenas com o som de CH, como em xadrez, e substituía definitivamente o CH em qualquer palavra. Eliminávamos o SS, o CH, o K, o Ç, o Q e o QU e o trema. K, Y e W - nomes próprios à parte - também não tinham lugar em nossa ortografia.
Como a de Qorpo Santo, era uma ortografia antietimológica. Os étimos eram ignorados em nossa reforma. Nosso critério era, como no alemão, o fonético. Batizamos nosso achado como o Novo Sistema Ortográfico Eclético-nacionalista.
Claro que ninguém levou a sério nossa proposta. Nem nossas mães, que não gostavam de nos ver reunidos, tentando reformar o homem, a língua e o mundo. Expulsos de casa, nos refugiávamos nos raros bares de Dom Pedrito. Mas os bares fechavam cedo. Expulsos dos bares, nos refugiávamos nos bordéis, únicos lugares que admitiam tertúlias madrugadas adentro.
Nossas tertúlias não tiveram futuro. Sempre preocupados com os homens e o mundo, pouco nos interessava fazer o que se faz num bordel. Por um lado, não tínhamos dinheiro. Por outro, mulher era coisa que nos assustava um pouco. Com o tempo, as profissionais colocaram uma atalaia na janela. Quando apareciam os “filósofos” na esquina, as mulheres fechavam a casa. De nós, saía no máximo a grana da cerveja.
Mas isto é outra história. Assim se perdeu no oblívio, como o de Qorpo Santo, um excelente projeto de reforma ortográfica. A meu ver, bem mais radical e eficaz que o agora proposto.
Suas peças nunca foram encenadas durante sua vida. Foi tido como louco e não era para menos. Consta que trancou a porta de sua casa e entrava pela janela. Sabe-se também que andou arrastando sua mulher pelos cabelos pela Rua da Praia. Não via objeção alguma em mulheres no serviço militar.
Enquanto os homens lutavam, as mulheres deitavam-se e pariam novos soldados. Seu teatro só foi descoberto, um século depois, pelos esforços de Aníbal Damasceno Ferreira, hoje professor de cinema na PUC de Porto Alegre.
Há toda uma intriga sórdida em sua ressurreição. Um professor de literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Guilhermino César da Silva, que escreveu uma História da Literatura do Rio Grande do Sul, na qual ignorou solenemente a existência de Qorpo Santo, pretendeu roubar a descoberta de Aníbal Damasceno, quando o dramaturgo se tornou nome nacional.
Mas não era disto que pretendia falar, e sim da reforma ortográfica proposta por Qorpo ao escrever. Em seus textos, ela é apresentada de forma incoerente, nem sempre mantendo uma unidade. Em suma, o som de cá do C passa a ser assumido pela letra Q. O C assume o som de S sibilante, embora o S também permaneça com a mesma função. Qorpo também admite o Ç como sibilante. Vê-se que o maluco da Rua da Praia intuiu a necessidade de uma reforma ortográfica, já no final do século XIX, mas não chegou a sistematizá-la. No entanto, sem nem sonhar com Internet, Qorpo Santo antecipou, há dois séculos, o uso do Q no internetês.
Nos anos 60, em Dom Pedrito, sem nunca termos ouvido falar de Qorpo Santo - que naquela época permanecia envolto pelo pó de algumas raras bibliotecas - três ou quatro estudantes de 15 e poucos anos, elaboraram um novo sistema ortográfico nacional. Eu era um deles, mas não o autor da reforma. Este mérito é de Danilo Morales, meu colega de ginásio, científico e mais tarde Filosofia.
Eliminamos algumas letras inúteis do sistema ortográfico. O C tinha sempre o som de K, o S de sibilante, e nunca assumia o som de Z, quando entre vogais. O Z assumia seu próprio som, como em rezar, e também o de X, como em exame. O X ficava apenas com o som de CH, como em xadrez, e substituía definitivamente o CH em qualquer palavra. Eliminávamos o SS, o CH, o K, o Ç, o Q e o QU e o trema. K, Y e W - nomes próprios à parte - também não tinham lugar em nossa ortografia.
Como a de Qorpo Santo, era uma ortografia antietimológica. Os étimos eram ignorados em nossa reforma. Nosso critério era, como no alemão, o fonético. Batizamos nosso achado como o Novo Sistema Ortográfico Eclético-nacionalista.
Claro que ninguém levou a sério nossa proposta. Nem nossas mães, que não gostavam de nos ver reunidos, tentando reformar o homem, a língua e o mundo. Expulsos de casa, nos refugiávamos nos raros bares de Dom Pedrito. Mas os bares fechavam cedo. Expulsos dos bares, nos refugiávamos nos bordéis, únicos lugares que admitiam tertúlias madrugadas adentro.
Nossas tertúlias não tiveram futuro. Sempre preocupados com os homens e o mundo, pouco nos interessava fazer o que se faz num bordel. Por um lado, não tínhamos dinheiro. Por outro, mulher era coisa que nos assustava um pouco. Com o tempo, as profissionais colocaram uma atalaia na janela. Quando apareciam os “filósofos” na esquina, as mulheres fechavam a casa. De nós, saía no máximo a grana da cerveja.
Mas isto é outra história. Assim se perdeu no oblívio, como o de Qorpo Santo, um excelente projeto de reforma ortográfica. A meu ver, bem mais radical e eficaz que o agora proposto.
24 de agosto de 2014
janer cristaldo
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