A judicialização da saúde está criando um SUS de duas portas: uma para aqueles que vão ao Judiciário e outra para o resto da população
A vida não tem preço!, bradam os defensores da mais recente decisão da Justiça brasileira obrigando o Estado a custear tratamento de saúde no exterior. O caso, como todos os outros nesta seara, é trágico.
Um bebê de cinco meses cuja única esperança, ainda que tênue, é uma operação de altíssimo custo. Poucos hospitais brasileiros têm condições de realizar o complexo procedimento (transplante multivisceral), ainda experimental, mas nenhum deles entende que o paciente se enquadre nos critérios exigidos no Brasil para que a operação tenha mínimas chances de sucesso. A última opção da família é levar o bebê aos Estados Unidos, onde um cirurgião se dispõe a realizar o procedimento. O preço: R$ 2 milhões.
Para muitos, a questão é simples. Como "a vida não tem preço" e a Constituição Federal garante a saúde como um direito fundamental e um dever do Estado, o governo deve gastar o que for necessário para tentar salvá-la. Negando-se a cumprir esta obrigação, cabe ao Judiciário forçá-lo, salvando assim uma vida posta em risco pelo "negligente", "incompetente" e "corrupto" Estado brasileiro. Seria ótimo se o problema fosse tão simples assim.
De fato, a vida não tem preço no sentido de um valor monetário de mercado. Não se pode comprar ou vender uma vida. Mas o cuidado à saúde tem preço, e muito alto. Médicos, enfermeiras e auxiliares têm salários. Remédios, próteses, exames, cirurgias, hospitais, ambulâncias custam caro. Como o presente caso demonstra, quando estão em questão novas tecnologias ou tratamentos experimentais, esses custos podem aumentar exponencialmente.
O Estado brasileiro gasta pouco com o sistema de saúde em comparação com outros países, mas nem que dobrasse ou triplicasse seus gastos e acabasse da noite para o dia com a corrupção e a ineficiência, poderia fornecer a toda a população o melhor e mais moderno tratamento possível disponível. Nenhum país poderia.
Nesse contexto de custos altos e crescentes e de recursos limitados, o dever do Estado é alocar os recursos disponíveis de forma equitativa à população. Essa tarefa é sem dúvida das mais inglórias que existem, não apenas pela tragicidade das escolhas, mas também pela escassez atual de critérios claros, consensuais e objetivos para realizá-la. A judicialização da saúde nos moldes em que vem sendo praticada no Brasil não resolve nem ajuda a resolver esse complexo problema, muito pelo contrário. De acordo com estimativa conservadora, foram gastos quase R$ 1 bilhão com judicialização da saúde no ano passado. A estimativa é conservadora porque não inclui, por falta de dados, o gasto dos municípios, de 17 Estados e do Distrito Federal. O dinheiro para o cumprimento das decisões não sai do bolso do corrupto ou da redução da ineficiência, mas do orçamento disponível para o cuidado de saúde de toda a população.
Não se coloca em questão, evidentemente, o valor da vida e da saúde do bebê ou de qualquer outro cidadão brasileiro que entre na Justiça para pleitear tratamento médico. Mas esse mesmo valor, e os direitos correspondentes, aplicam-se à vida e à saúde de toda a população. Negar um tratamento não significa necessariamente ignorar o valor da vida e da saúde do demandante, mas dar-lhe o mesmo valor que à vida e à saúde de todos que também dependem do sistema.
A judicialização da saúde no modelo brasileiro está criando um SUS de duas portas: uma para aqueles que vão ao Judiciário, para quem "a vida não tem preço" e conseguem assim acesso irrestrito aos recursos estatais para satisfazer suas necessidades em saúde; outra para o resto da população, que, inevitavelmente, tem acesso limitado, e mais limitado ainda pelo redirecionamento de recursos que beneficia aqueles que entraram pela outra porta.
O argumento daqueles que defendem incondicionalmente a judicialização como simples proteção da vida deve portanto ser adaptado para exprimir seu verdadeiro sentido: "A vida não tem preço, mas a vida de alguns tem menos preço que a vida de outros".
19 de junho de 2014
Octavio Ferraz e Daniel Wang, Folha de SP
A vida não tem preço!, bradam os defensores da mais recente decisão da Justiça brasileira obrigando o Estado a custear tratamento de saúde no exterior. O caso, como todos os outros nesta seara, é trágico.
Um bebê de cinco meses cuja única esperança, ainda que tênue, é uma operação de altíssimo custo. Poucos hospitais brasileiros têm condições de realizar o complexo procedimento (transplante multivisceral), ainda experimental, mas nenhum deles entende que o paciente se enquadre nos critérios exigidos no Brasil para que a operação tenha mínimas chances de sucesso. A última opção da família é levar o bebê aos Estados Unidos, onde um cirurgião se dispõe a realizar o procedimento. O preço: R$ 2 milhões.
Para muitos, a questão é simples. Como "a vida não tem preço" e a Constituição Federal garante a saúde como um direito fundamental e um dever do Estado, o governo deve gastar o que for necessário para tentar salvá-la. Negando-se a cumprir esta obrigação, cabe ao Judiciário forçá-lo, salvando assim uma vida posta em risco pelo "negligente", "incompetente" e "corrupto" Estado brasileiro. Seria ótimo se o problema fosse tão simples assim.
De fato, a vida não tem preço no sentido de um valor monetário de mercado. Não se pode comprar ou vender uma vida. Mas o cuidado à saúde tem preço, e muito alto. Médicos, enfermeiras e auxiliares têm salários. Remédios, próteses, exames, cirurgias, hospitais, ambulâncias custam caro. Como o presente caso demonstra, quando estão em questão novas tecnologias ou tratamentos experimentais, esses custos podem aumentar exponencialmente.
O Estado brasileiro gasta pouco com o sistema de saúde em comparação com outros países, mas nem que dobrasse ou triplicasse seus gastos e acabasse da noite para o dia com a corrupção e a ineficiência, poderia fornecer a toda a população o melhor e mais moderno tratamento possível disponível. Nenhum país poderia.
Nesse contexto de custos altos e crescentes e de recursos limitados, o dever do Estado é alocar os recursos disponíveis de forma equitativa à população. Essa tarefa é sem dúvida das mais inglórias que existem, não apenas pela tragicidade das escolhas, mas também pela escassez atual de critérios claros, consensuais e objetivos para realizá-la. A judicialização da saúde nos moldes em que vem sendo praticada no Brasil não resolve nem ajuda a resolver esse complexo problema, muito pelo contrário. De acordo com estimativa conservadora, foram gastos quase R$ 1 bilhão com judicialização da saúde no ano passado. A estimativa é conservadora porque não inclui, por falta de dados, o gasto dos municípios, de 17 Estados e do Distrito Federal. O dinheiro para o cumprimento das decisões não sai do bolso do corrupto ou da redução da ineficiência, mas do orçamento disponível para o cuidado de saúde de toda a população.
Não se coloca em questão, evidentemente, o valor da vida e da saúde do bebê ou de qualquer outro cidadão brasileiro que entre na Justiça para pleitear tratamento médico. Mas esse mesmo valor, e os direitos correspondentes, aplicam-se à vida e à saúde de toda a população. Negar um tratamento não significa necessariamente ignorar o valor da vida e da saúde do demandante, mas dar-lhe o mesmo valor que à vida e à saúde de todos que também dependem do sistema.
A judicialização da saúde no modelo brasileiro está criando um SUS de duas portas: uma para aqueles que vão ao Judiciário, para quem "a vida não tem preço" e conseguem assim acesso irrestrito aos recursos estatais para satisfazer suas necessidades em saúde; outra para o resto da população, que, inevitavelmente, tem acesso limitado, e mais limitado ainda pelo redirecionamento de recursos que beneficia aqueles que entraram pela outra porta.
O argumento daqueles que defendem incondicionalmente a judicialização como simples proteção da vida deve portanto ser adaptado para exprimir seu verdadeiro sentido: "A vida não tem preço, mas a vida de alguns tem menos preço que a vida de outros".
19 de junho de 2014
Octavio Ferraz e Daniel Wang, Folha de SP
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