"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sábado, 17 de maio de 2014

FICÇÃO FAZ FALTA?

Como imprensa que ousa fazer oposição, Veja cumpre sua missão. Faz melhor trabalho que os partidos ditos de oposição, que mal ousam criticar Dilma e alimentam um medo sagrado de perder votos se criticam Lula. Pena que a revista, como meio de divulgação cultural, seja um desastre.

Já não lembro quando Veja fez a crítica de um filme que mereça ser visto. A redatora do setor, Isabela Boscow, prima por comentar o pior que o cinema produz, best-sellers idiotas tipo Batman, Homem Aranha, Superman, X-Man e bobagens outras transpostas dos quadrinhos.

Literatura, idem. Haja best-sellers ianques para enfiar na goela do leitor. Em sua penúltima edição, a revista traz um discutível ensaio sobre as excelências da ficção. No fundo, um gancho para divulgar “o maior fenômeno da atual literatura para jovens”, a um tal de John Green, ao qual dedica cinco páginas, que está em primeiro lugar em sua lista de mais vendidos e já vendeu 1,2 milhão de exemplares no Brasil. Quer dizer, não pode ser leitura que preste. Não o li nem vou ler. Em primeiro lugar, não leio best-sellers instantâneos, fabricados ao gosto do público. Curiosamente, as cinco páginas da reportagem citam obras do autor, mas nada dizem sobre nenhuma delas. Ficamos no escuro.

Em segundo lugar, desde jovem tomei distância dessa próspera indústria chamada literatura infanto-juvenil. Ou melhor, não que tomasse distância. Em meus dias de jovem, essa colossal indústria praticamente não existia. O mercado era suprido por gibis que, confesso, li com prazer. De certa forma, aprendi a ler com eles. Mas jamais deixei de lado o livro. Se gostava de ler Tarzan em quadrinhos, mais me interessavam os livros de Edgar Rice Burroughs, que deixavam espaço à imaginação. Muito viajei pelos pântanos de Par-Ul-Don e muitas vezes vibrei com o homem-macaco gritando kriagh bandolo tarmangani: matar o homem branco.

Vamos ao ensaio. Segundo Veja, a ciência comprova que a arte da ficção não é supérflua: está, ao contrário, profundamente arraigada na natureza humana e é necessária a ela. Até aí, nada a discordar. A humanidade repousa em ficções. A começar pela mais bem sucedida de todos os tempos, a idéia de Deus. É o personagem de ficção mais universal e conhecido já criado pela literatura. É invocado tanto por sábios e como por analfabetos. Seu nome está na boca de reis, governantes, como na de príncipes da Igreja ou criadores de seitas. É uma ficção peculiar, que sobrepaira a literatura e, ao contrário desta, que apenas propõe caminhos, é normativa e gera dogmas, leis e mesmo ética.

Outra coisa são as ficções não-religiosas, que não pretendem dominar as mentes de nenhum leitor. “não é mistério saber por que informações verdadeiras importam para nossa sobrevivência. Mas é bem mais desafiador, para a ciência, entender por que nos importamos com os dramas de mentirinha de personagens inventados”, diz Jonathan Gottschall, autor de The Storytelling Animal. Gottschall complica. Não é preciso apelar à ciência para encontrar explicações. Nos importamos com os dramas de mentirinha porque eles são bem melhor tecidos que a vida. A vida está cheia de momentos de monotonia, que são eliminados na ficção. (Não falo de Kafka ou Joyce, bem entendido). Todo grande personagem é tão bem construído que fascina – ou causa repulsa – bem mais que o homenzinho real.

Além disso, ao enfrentar uma ficção, o leitor tem de aceitar a convenção proposta pelo autor, a de que o personagem é alguém existente. Por exemplo, os romances de Tomas Mann ou Dostoievski. Hans Kastorp ou Settembrini, o príncipe Mishkin ou Rodion Romanovitch Raskolnikov não são pessoas que você vai encontrar no boteco da esquina. Suas intervenções são verdadeiros ensaios, que nada têm de um diálogo descompromissado. Se você não aceita a premissa de que tais digressões sejam naturais, você não entra na obra.

Os personagens são hipóstases do autor, como diz Ernesto Sábato, e só um grande autor criará grandes personagens. Em um de seus ensaios sobre a condição do escritor, o escritor argentino apoia-se em Donne, quando este diz que ninguém dorme na carroça que o leva da prisão ao patíbulo e, no entanto, todos dormimos desde a matriz até a sepultura, ou pelo menos não estamos totalmente acordados. “Uma das grandes funções da literatura: despertar o homem que viaja rumo ao patíbulo”.

"A literatura, como toda arte, é uma confissão de que a vida não basta", escreveu Fernando Pessoa. A literatura pode nos fazer chorar ou rir, nos inspira solidariedade e sentimentos nobres, como também repulsa ou horror. A vida de homens como Alexandre, Schliemann, Fernão de Magalhães também. Mas quando lemos uma biografia destes vultos, estamos lendo uma espécie de ficção, na qual foram selecionados seus melhores momentos.

Sim, a arte da ficção não é supérflua, como diz a reportagem de Veja. Só faltou dizer algo: a grande ficção, a boa literatura. Porque a ficção que a revista tem divulgado não faz falta nenhuma à humanidade.


17 de maio de 2014
janer cristaldo

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