Tem gente que não gosta de gente. Dentre esse tipo de pessoas, há aquelas que buscam nos animais uma espécie de compensação afetiva para estabelecer relacionamentos e escapar da solidão.
Tem também gente que ama gente. Já dentre essa classe de pessoas, há aquelas que vivem reclamando de quem dá preferência à adoção de animais, ao invés de crianças carentes.
No meio dos dois tipos, há ainda pessoas que se satisfazem com relacionamentos cotidianos tanto com humanos quanto com animais.
Na linguagem comum das ruas, é habitual usar a expressão “Fulano é muito humano” para designar uma pessoa portadora de sensibilidade, generosidade ou solidariedade.
Por outro lado, também é comum indignar-se quando um exemplar da raça humana transgride algum código de ética ou de convivência social dizendo que “Fulano é um animal”.
De que lado está a verdade? Humanos são mesmo seres sensíveis, generosos e solidários enquanto os animais são geneticamente incapazes de se comportar de acordo com as regras da boa convivência humana? Claro que você já sabe a resposta: existe gente chegada a atitudes “animalescas” e existem animais tão sensíveis de quem se poderia dizer que já são um pouco “humanos”.
A frequência estatística de cada um desses tipos? Bem, eu diria que, se deixados em seu estado natural ― isto é, sem que grandes traumas tenham ocorrido em seu percurso geneticamente programado ― a chance de encontrar animais humanizados e pessoas animalizadas estaria próxima da do acaso, ou seja, 50% para cada lado.
Inútil negar a evidência de que somos todos humanos e animais ao mesmo tempo. Na nossa espécie, o cerne biológico é recoberto por uma camada de racionalidade que age como uma espécie de tampão para inibir a expressão de instintos primitivos. Quase sempre dá certo, mas não há garantia de espécie alguma de que um acontecimento inusitado e com uma carga energética maior do que a que estamos habituados não possa burlar a vigilância do ego e irromper com força máxima no terreno da animalidade.
O problema está na nossa dificuldade em admitir que existe, em estado latente, dentro de cada um de nós o potencial de visitar qualquer um desses extremos a qualquer momento e sem que possamos antecipar isso. Nossa censura interna apenas se esforça em comprovar que isso jamais acontecerá conosco.
Tudo seria simples se todos os comportamentos humanos fossem plenamente conscientes ― e não são. O motivo que aparece em nossa consciência para justificar uma determinada atitude nossa nem sempre corresponde à realidade de nossa emoção. Como fomos adestrados pacientemente desde muito cedo para a expressão de sentimentos positivos e para a repressão dos negativos, nos deixamos cegar para a crueldade de muitas de nossas intenções.
“O inferno são os outros”, já dizia Jean-Paul Sartre.
Se não tivéssemos de conviver com pessoas que adotam outros estilos de vida, outros códigos de conduta e outros valores, nossa existência seria plácida como a superfície de um lago em dia sem vento.
Já na contramão dessa crença, Freud nos alertou em muitos de seus escritos para a violência contida no “retorno do oprimido”. Se tivermos sido extremamente eficientes ao longo de nossa vida para conter a livre expressão de instintos selvagens, podemos ter esticado tanto a corda que inadvertidamente nos colocamos a apenas um passo de uma explosão devastadora.
Para domesticar a fera humana e incorporar a doce espontaneidade animal, precisamos simplesmente ter consciência de que temos um pé em cada canoa o tempo todo. É, pois, a delicada tensão dinâmica entre nossa humanidade e nossa animalidade o princípio-guia que rege uma existência saudável, a meio caminho entre a misantropia e a filantropia.
Para tratar daquelas pessoas que sentem dificuldade em encontrar o caminho do meio, lancei há pouco tempo o conceito de “adestramento de humanos”. Se você se interessa em saber mais a esse respeito, entre em contato comigo.
13 de março de 2014
Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga.
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