Beneficiários do Minha Casa, Minha Vida estão anunciando na internet imóveis do Residencial Viver Melhor, em Manaus. A revenda ou a transferência de unidades habitacionais do programa federal, destinado à população de baixa renda, é proibida nos primeiros 10 anos. Os valores dos imóveis variam entre R$ 30 mil e R$ 95 mil. O G1 ligou, foi ao encontro de anunciantes e confirmou a prática.
A Caixa Econômica Federal declarou que a venda dos imóveis é ilegal e vai investigar os casos. "O contrato e a lei estabelecem que as famílias, ao longo de 10 anos, não poderão alugar, ceder e vender as unidades habitacionais, sob pena de devolverem, integralmente, os subsídios recebidos ou, na falta deste procedimento, perderem o direito ao imóvel", informou o banco, por meio de nota.
Segundo o Ministério Público Federal, o crime tem pena prevista de reclusão, de 2 a 6 anos, e multa.
O Residencial Viver Melhor é considerado um dos maiores conjuntos habitacionais do país na faixa 1 do programa, destinada a famílias com renda mensal de até R$ 1,6 mil. Ao todo, são 8.895 unidades, entre casas e apartamentos, que foram construídas em área do bairro Santa Etelvina, na Zona Norte de Manaus.
A maior parte dos imóveis - 5.384 moradias - foi entregue com a presença da presidente Dilma Rousseff, em fevereiro deste ano. Já a primeira etapa, entregue em dezembro de 2012, teve 3.511 imóveis. As famílias contempladas pagam parcelas mensais de aproximadamente R$ 30 durante 10 anos, que corresponde ao financiamento pela Caixa. O custo de construção de cada unidade é de R$ 48 mil (casas) e R$ 52 mil (apartamentos).
Negociação
Em dois sites de anúncios gratuitos, é possível encontrar oito imóveis do conjunto habitacional sendo ofertados. Sem se identificar, o G1 entrou em contato com os anunciantes, que deram detalhes de como seria feita a transação da venda ilegal e as condições do negócio.
A primeira vendedora ofereceu um apartamento de 2 quartos, sala, cozinha e área de serviço por R$ 57 mil. O imóvel fica localizado na primeira etapa do conjunto. Em conversa com a equipe de reportagem, a mulher ainda propôs a venda, pelo valor de R$ 30 mil, de outro imóvel no Viver Melhor II. A anunciante reconheceu que a prática é irregular, mas disse que é possível burlar as normas.
"O pagamento é a vista, porque lá o pessoal não vende parcelado e não tem financiamento. Fazemos o contrato de compra e venda com recibo, depois passamos a procuração para o comprador ficar pagando R$ 60 do boleto da Caixa, que vem todo mês. É um contrato de gaveta, e o comprador fica respondendo pelo beneficiário perante a Caixa. Não tem problema, mas lógico que não se pode comentar que comprou ou vendeu. Depois de uns meses, o comprador transfere para o próprio nome", revelou.
Entre os anúncios, o imóvel mais caro custa R$ 95 mil. A descrição é de um "belíssimo apartamento, construção nova (entregue em novembro de 2012); 2 quartos, sala, 1 banheiro, cozinha e área de serviço, 2 vagas de garagem. Condomínio oferece porteiro eletrônico e demais vantagens".
Em outra ligação, uma mulher atendeu e disse que o marido é corretor de imóveis e foi beneficiado pelo programa. Eles oferecem o imóvel por R$ 70 mil.
"Eu sou a esposa dele, e nós trabalhamos juntos. Fomos sorteados pelo Minha Casa, Minha Vida e estamos vendendo o apartamento quitado pela Caixa Econômica. Terá toda documentação assim que quitar o valor e, se estiver interessado, podemos mostrar o imóvel no residencial", afirmou.
Outro anunciante disse que o comprador deve pagar uma entrada de R$ 35 mil, que seria usada para quitar o imóvel. Ele também propôs que o negócio fosse firmado com contrato. A transferência da propriedade ocorreria quando os R$ 60 mil restantes fossem pagos.
"Minha mãe mora em Fortaleza e ela está precisando de mim. Estou vendendo, porque tenho que ir embora para o Nordeste. Chegando lá, tenho que comprar um lugarzinho", justificou o homem.
'Ninguém vai descobrir'
Após a negociação por telefone, o G1 se encontrou com dois beneficiários no Residencial Viver Melhor. A mulher disse ser servidora pública estadual. É titular do imóvel e negocia a venda do apartamento com o marido corretor. Ela mantém o apartamento fechado, na Quadra 14 Bloco 186 etapa I. No local, mostrou as instalações e renegociou as condições do "contrato de gaveta".
"O apartamento está no meu nome, podemos negociar e deixar por R$ 50 mil quitado. Olha o desconto. Passamos as contas de água e luz para o seu nome. Já o apartamento, eu faço uma procuração no cartório e, no ano que vem, transferimos na Caixa, pois eles deram o prazo de 3 anos. Só irão descobrir se for lá na Caixa falar", disse.
A beneficiária disse ser proprietária de outro imóvel, em construção, em um condomínio no km 1 da BR-174 (Manaus - Boa Vista), também parte do Minha Casa, Minha Vida.
O segundo encontro com anunciante ocorreu na Quadra 19 no Bloco 124. Uma família de 5 pessoas mora no apartamento. O homem oferece por R$ 95 mil o imóvel, que está no nome da esposa. Ele orientou até como proceder em caso de possíveis fiscalizações da Caixa e da Suhab (Superintendência de Habitação do Amazonas). "Quero entregá-lo quitado, é uma segurança para nós. Sempre tem um pessoal da Caixa passando por aqui e, se estiver quitado, não tem problema. Ontem, veio uma pessoa da Suhab fazer reunião e ,se eles cismarem, é preciso estar quitado", afirmou.
O G1 ainda tentou falar com outros três anunciantes pelos telefones informados nos anúncios, mas ninguém atendeu. Esses imóveis eram oferecidos por R$ 39 mil, R$ 45 mil e R$ 70 mil.
Investigação
Somente na segunda etapa do residencial Viver Melhor, o governo federal investiu mais de R$ 272 milhões. O Governo do Amazonas destinou R$ 40.755.198,28 para construção das mais de 5 mil moradias.
A Suhab explicou que é responsável pelo cadastramento das famílias beneficiárias com base em uma série de critérios estabelecidos pelo Ministério das Cidades e Caixa Econômica Federal. A Suhab disse que a competência de fiscalizar é da Caixa.
"Informamos que até o presente momento não temos nenhuma denúncia formalizada quanto à venda de imóveis no Residencial Viver Melhor, apenas uma via telefone. Como é uma denúncia de natureza grave, é necessária essa formalização através de entrada no protocolo desta e assim tomarmos as providências. A Caixa Econômica Federal, por ser mentora do contrato, é responsável por essa fiscalização e também recebe tais denúncias. Lembramos ainda que a Suhab é responsável pelo processo social dos inscritos e a verificação quanto à aptidão dos critérios necessários. A CEF é quem seleciona por meio de renda comprovada junto a instituição", justificou o órgão estadual.
Em nota, a Caixa esclareceu que os imóveis do programa destinados às famílias com renda de até R$ 1,6 mil (faixa 1) não podem ser comercializados, sob nenhuma hipótese. A Caixa afirmou que vai apurar o caso e tomar as medidas cabíveis.
"Em se constatando que houve desvio de finalidade, entre eles, o repasse do imóvel para terceiros, a Caixa adota os procedimentos legais para cancelar o contrato e repassar a unidade para outra família que esteja inscrita e selecionada pelo governo, de acordo com as regras do programa. Neste caso, o próprio contrato e a lei estabelecem que as famílias, ao longo de 10 anos, não poderão alugar, ceder e vender as unidades habitacionais, sob pena de devolverem, integralmente, os subsídios recebidos ou, na falta deste procedimento, perderem o direito ao imóvel", enfatizou a Caixa.
A superintendência da Polícia Federal no Amazonas e o Ministério Público Federal disse que até o momento não há denúncias formalizadas sobre vendas ilegais de imóveis do Minha Casa Minha Vida.
“No caso do programa Minha Casa Minha Vida, há o financiamento oficial para que pessoas adquiram suas casas e/ou apartamentos e o objeto do programa, a intenção do governo, é garantir a moradia. Pessoas que vendem os imóveis adquiridos por meio do programa estão, na prática, utilizando recursos públicos para especulação imobiliária, o que incide em conduta prevista na Lei dos Crimes Financeiros (Lei 7.492)”, explicou Tatiana Dornelles, procuradora-chefe do MPF no Amazonas.
O artigo 20 dessa lei diz que é crime financeiro "Aplicar, em finalidade diversa da prevista em lei ou contrato, recursos provenientes de financiamento concedido por instituição financeira oficial ou por instituição credenciada para repassá-lo". A pena prevista na lei para o crime é reclusão, de 2 a 6 anos, e multa.
“Portanto, vender imóveis obtidos por meio do programa federal Minha Casa Minha Vida, fora das hipóteses eventualmente contidas no contrato de financiamento, é crime e pode, sim, resultar na prisão do responsável, após o caso ser devidamente apurado e processado pelo Ministério Público Federal perante a Justiça”, afirmou a procuradora.
20 de março de 2014
G1
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