De modo geral, repetiam os argumentos de sempre:
“É preciso soltar mais porque prender não resolve nada” e “as medidas preconizadas na lei não foram aplicadas“.
Começo por este último. Essa não é a exata expressão da verdade. Como acontece com 99% das leis brasileiras, também as medidas preconizadas nesta são impossíveis de ser aplicadas.
E o absoluto descaso com a aplicabilidade das leis que se redigem por aqui é a principal causa, longe da segunda, da desmoralização geral de uma Justiça que é tão fanática na sua preferência pelo texto em detrimento de qualquer outra consideração de ordem prática que, também na hora de julgar, coloca-o muito à frente dos fatos.
Quase 80% dos nossos julgamentos são decididos pelo que se chama eufemisticamente de “vício formal“, e não pelo mérito. Matou ou não matou? Roubou ou não roubou? Não interessa. O que decide o destino do réu é se o ponto de interrogação estava ou não estava no lugar correto e se os depoimentos foram ou não colhidos na hora marcada.
Por que prevalece esse absurdo, mesmo sendo tão velho e manifestamente absurdo? Porque ter o poder de decidir em função da vírgula, e não do fato, vale muuuuito dinheiro para os chamados “operadores da Justiça“. O tanto que um ser humano, em especial os daquele tipo que se deixa cevar no dinheiro fácil do crime impune, está disposto a pagar para seguir impunemente fazendo dinheiro fácil.
São duas indústrias que se alimentam uma à outra, portanto, a do crime envolvendo dinheiro grosso e a do formalismo posto agressiva e dolosamente acima da lógica e do mero bom senso, a serviço da in-Justiça ou da des-Justiça.
Nossa Lei de Execução Penal, cabe lembrar também, é aquela que transforma a tal “dosimetria da pena” naquele exercício esotérico que se viu no julgamento do mensalão que faz tanto bem para a credibilidade da Justiça brasileira quanto a matemática criativa do dr. Mantega para a credibilidade da economia de dona Dilma. É um verdadeiro jogo de truco em que nenhuma carta vale o valor de face.
Dos crimes praticados, só uma porcentagem ínfima chega aos tribunais e, destes, uma ainda muito menor chega a uma condenação. E mesmo desse restolho só as penas acima de “oito anos“, com os anos adicionais divididos por seis, resultam em prisão de fato…
E, no entanto, todos os agentes desse sistema continuam afirmando que o remédio para o resultado desastroso de soltar tanto e tão mal (porque solta-se mais quem mais merece ficar preso) é soltar mais ainda. O problema não está, aliás, em soltar ou não soltar, mas, sim, em fazê-lo muito mais em função de arbítrio que de critérios relativos à qualidade do crime cometido.
A premissa que embala essa outra distorção, muito mais venenosa que a primeira, é a de que a principal função da prisão é “reformar” quem vai preso, e não proteger quem continua solto. Ela decorre, por sua vez, da mentira mestra segundo a qual não existe maldade neste mundo. É falso o arquétipo da natureza humana acatado por todos os povos de todos os tempos. Aqui não há Caim nem Abel.
No Brasil das nossas escolas “progressistas“, recriado recorrentemente, com indiscutível competência técnica, nas vulgatas de Jacarepaguá, mesmo o criminoso que não hesita em atirar bebês para serem moídos por trituradores de lixo, sequestrar criancinhas com o concurso de assassinas psicopatas e internar a irmã sã em manicômios para tomar o que é dela é apenas e tão somente uma vítima inocente da sociedade que se regenera milagrosamente e se transforma em herói assim que finalmente entende o que “fizeram com ele“.
Esse personagem recorrente, que reencarna de novela em novela, é o retrato fiel da norma eleita como politicamente correta – isto é, a única que pode ser afirmada livre de execração e apedrejamento moral na praça pública da mídia – segundo a qual o brasileiro está prévia e automaticamente dispensado de fazer qualquer coisa por si mesmo; está sempre e antecipadamente isento de responsabilidade por seus atos. Seja o que for que fizer ou abrir mão de fazer, a culpa será sempre “da família“, “da sociedade“, “do Estado” ou “dos ianques“, mas nunca dele próprio.
A cereja desse bolo de absurdos, que se traduz nos horrores que os jornais que precedem as novelas exibem, ultimamente ao vivo, fica por conta do sindicato desses juristas e advogados que clamam pela “modernidade” de um código de execuções penais que, na hora de prescrever benefícios, não faz grandes distinções entre ladrões de penosas e assassinos e estupradores de crianças, todos vítimas de “iniquidades” prévias.
Pois a outrora gloriosa OAB colocou fora da lei a advocacia “pro bono” (gratuita e “para o bem“), que poderia reduzir à metade a população das nossas prisões, que se tornam monstruosas, principalmente e antes de tudo, em função da superlotação, fato que constitui ignomínia única em todo o mundo civilizado.
Graças a isso, entra década, sai década, seguimos convivendo, sob o silêncio cúmplice dos que podiam mudar essa situação, com o dado medieval – e a consequente carga de ódios incuráveis – de ter trancadas nas nossas prisões centenas de milhares de pessoas sem culpa formada ou com a pena já cumprida, mas sem dinheiro para comprar as maravilhas curativas do código de execuções penais.
Para terminar, cabe mencionar outra ausência notória desse debate. Outra ausência notória, aliás, da realidade brasileira como um todo. Trata-se da boa e velha democracia, aquele regime cujo primeiro fundamento é a igualdade perante a lei.
Quando começarem a prender político ladrão, funcionário público ladrão e ladrão rico; quando eles passarem a ser julgados pelos mesmos tribunais que julgam os outros; quando passarem a ser presos nas mesmas prisões em que os outros são presos, veremos a “questão carcerária” ser consertada como que por encanto.
O resto, data vênia, é conversa pra boi dormir.
09 de fevereiro de 2014
Artigo publicado originalmente em O Estado de S. Paulo de 5/2/2014
in vespeiro
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