Fico pensando como rolaria hoje essa história que em breve será velha de 70 anos. O bafafá, que na morosidade postal da época levou dias para se espalhar e tomar corpo, se alastraria instantaneamente. Em minutos, as redes sociais recolheriam gordos cardumes de manifestações. Escrita num tempo em que "curtir" era processar couro de bicho, a "Carta contra os escritores mineiros", de Vinicius de Moraes, haveria agora de ser pronta e profusamente "compartilhada". Nas Gerais, poderia atear nova Inconfidência, e desta vez, em lugar de ficarem tão ocupados em versejar e desenhar bandeira com inscrição em latim, os revoltosos se lembrariam de comprar uns bacamartes. Diante deles, de nada adiantaria ter o poetinha maneirado no subtítulo - "Por muito amar" - da carta que endereçou à mineirada da literatura.
Conhece a história? Em outubro de 1944, Vinicius, Otto Lara Resende e Fernando Sabino atravessaram madrugada bebendo e papeando no apartamento deste último, em Copacabana. Ao final, contará o poeta, os três amigos (31, 22 e 21 anos, respectivamente) haviam chegado à conclusão de que os escritores mineiros eram por demais contidos, encapsulados num bom comportamento que os impedia de se lambuzar de vida.
O que levou Vinicius a levantar essa bola foi a leitura, ali, de textos de um dos presentes (cujo nome a "Carta" não entrega), peças "belas e caprichosamente escritas", porém denunciadoras de alma retorcida e angustiada - sufocamento que a seu ver impregnava não só o autor como os escribas montanheses em geral. Em sua desabrida carioquice, o poeta foi tão convincente que os dois mineirinhos toparam embarcar num esforço para mudar o panorama. Ficou acertado que os três escreveriam sobre o tema.
Assim fez Vinicius, imediatamente, com a tal "Carta", extensa, em tom pomposo e recheada de cutucões retóricos. "A alma que tantas vezes vos fervilha, vós a prendeis num corpo por demais estático", denunciou Vinicius, e por aí foi. "Por que só olhais o mundo das janelas de vossas casas ou dos vossos escritórios?" (...). Precisais de água, a água do mar, a água da mulher, a água da criação. Temeis errar: errai. Temeis mostrar a vossa nudez: desnudai-vos. (...) Por que economizais e para quê: para comprar o vosso túmulo?"
Publicada primeiro em O Diário, de Belo Horizonte, depois em O Jornal, do Rio, a carta armou um temporal sobre a já então desguarnecida cabeça de Vinicius. Houve até, contou Sabino sem abrir o jogo, quem detectasse, naquela prosa enfeitada, manobras cavilosas do poeta para surrupiar mulher de escritor mineiro. "Houve fila feita nos jornais de Belo Horizonte para me espinafrar", contará Vinicius bem mais tarde. Tamanha foi a reação que ele, Sabino, também em O Jornal, saiu em defesa do amigo - e também levou bordoadas.
Quanto a Otto, vivendo ainda em Minas, escolheu a moita, silêncio que lhe valeu pito de Sabino: "Na nossa conversa com o Vinicius, você foi o primeiro a reconhecer os nossos erros mineiros e se dispor a corrigi-los". Na volta do correio, ironias de Otto: "Certamente sou ótima carne para vossas ferozes guilhotinas do mundo novo que virá e que se levantará sobre o sangue dos fracos e dos conciliadores".
Oito anos depois, Vinicius voltou ao bafafá e fez revelações. A "Carta", esclareceu, fora suscitada pela leitura de "uma página de prosa desse mineiro doce, inteligente e meio alucinado" - Otto Lara Resende. Temeroso de ferir uma tribo que amava, o poeta consultou mineiros ilustres do Rio - Drummond, Aníbal Machado e Rodrigo M. F. de Andrade, que lhe deram imprimatur.
"Venho hoje aqui retirar publicamente os termos da 'Carta' com relação a meu amigo Otto Lara Resende", escreveu Vinicius, recém-saído da leitura de O Lado Humano. "Me penitencio de não ter enxergado então nesse bicho do mato de São João del Rei esse lado humano, demasiado humano, que umedece, sob um estilo sem ipsilones, tão belas páginas de prosa. Que ninguém deixe de ler esse pequeno livro de contos, nove ao todo, alguns cruéis, sórdidos mesmo - mas dessa crueza tão da vida humana."
Taí, família e editores de Otto Lara Resende, que tal trazer de volta essa obra que encantou Vinicius e tantos outros bons leitores?
Conhece a história? Em outubro de 1944, Vinicius, Otto Lara Resende e Fernando Sabino atravessaram madrugada bebendo e papeando no apartamento deste último, em Copacabana. Ao final, contará o poeta, os três amigos (31, 22 e 21 anos, respectivamente) haviam chegado à conclusão de que os escritores mineiros eram por demais contidos, encapsulados num bom comportamento que os impedia de se lambuzar de vida.
O que levou Vinicius a levantar essa bola foi a leitura, ali, de textos de um dos presentes (cujo nome a "Carta" não entrega), peças "belas e caprichosamente escritas", porém denunciadoras de alma retorcida e angustiada - sufocamento que a seu ver impregnava não só o autor como os escribas montanheses em geral. Em sua desabrida carioquice, o poeta foi tão convincente que os dois mineirinhos toparam embarcar num esforço para mudar o panorama. Ficou acertado que os três escreveriam sobre o tema.
Assim fez Vinicius, imediatamente, com a tal "Carta", extensa, em tom pomposo e recheada de cutucões retóricos. "A alma que tantas vezes vos fervilha, vós a prendeis num corpo por demais estático", denunciou Vinicius, e por aí foi. "Por que só olhais o mundo das janelas de vossas casas ou dos vossos escritórios?" (...). Precisais de água, a água do mar, a água da mulher, a água da criação. Temeis errar: errai. Temeis mostrar a vossa nudez: desnudai-vos. (...) Por que economizais e para quê: para comprar o vosso túmulo?"
Publicada primeiro em O Diário, de Belo Horizonte, depois em O Jornal, do Rio, a carta armou um temporal sobre a já então desguarnecida cabeça de Vinicius. Houve até, contou Sabino sem abrir o jogo, quem detectasse, naquela prosa enfeitada, manobras cavilosas do poeta para surrupiar mulher de escritor mineiro. "Houve fila feita nos jornais de Belo Horizonte para me espinafrar", contará Vinicius bem mais tarde. Tamanha foi a reação que ele, Sabino, também em O Jornal, saiu em defesa do amigo - e também levou bordoadas.
Quanto a Otto, vivendo ainda em Minas, escolheu a moita, silêncio que lhe valeu pito de Sabino: "Na nossa conversa com o Vinicius, você foi o primeiro a reconhecer os nossos erros mineiros e se dispor a corrigi-los". Na volta do correio, ironias de Otto: "Certamente sou ótima carne para vossas ferozes guilhotinas do mundo novo que virá e que se levantará sobre o sangue dos fracos e dos conciliadores".
Oito anos depois, Vinicius voltou ao bafafá e fez revelações. A "Carta", esclareceu, fora suscitada pela leitura de "uma página de prosa desse mineiro doce, inteligente e meio alucinado" - Otto Lara Resende. Temeroso de ferir uma tribo que amava, o poeta consultou mineiros ilustres do Rio - Drummond, Aníbal Machado e Rodrigo M. F. de Andrade, que lhe deram imprimatur.
"Venho hoje aqui retirar publicamente os termos da 'Carta' com relação a meu amigo Otto Lara Resende", escreveu Vinicius, recém-saído da leitura de O Lado Humano. "Me penitencio de não ter enxergado então nesse bicho do mato de São João del Rei esse lado humano, demasiado humano, que umedece, sob um estilo sem ipsilones, tão belas páginas de prosa. Que ninguém deixe de ler esse pequeno livro de contos, nove ao todo, alguns cruéis, sórdidos mesmo - mas dessa crueza tão da vida humana."
Taí, família e editores de Otto Lara Resende, que tal trazer de volta essa obra que encantou Vinicius e tantos outros bons leitores?
09 de fevereiro de 2014
Humberto Werneck, O Estado de S. Paulo
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