“Me roubaram Deus” – registrou uma senhora em um boletim de ocorrência de uma delegacia, não lembro agora onde. Pela escassa notícia que li, tampouco lembro onde, o delegado definiu-a como esquizofrênica. Ora, não basta um B.O. como esse para assim diagnosticar a doença. Roubo desses é dos mais graves. Eu que o diga.
Não que me tenham roubado deus. Fui eu mesmo quem o jogou no lixo, ainda em meus verdes anos. Nasci ateu, como nascem todos os seres humanos. Lá pelos seis ou sete anos, quando ainda vivia no campo, uma catequista uruguaia vendeu-me a idéia de deus, daquele deus que ama e pune, conforme o adoremos ou ofendemos.
Fosse só a idéia de deus, o problema não seria tão grave. Era todo um pacote: sentido para a existência, vida eterna, bem-aventurança ou padecimento também eternos. Meus dias decorriam entre o medo e a esperança. Diz-se que a carne é fraca. Ora, a carne é forte. Tão forte que invariavelmente faz o espírito dobrar-se. A cada queda, eu me sentia imundo e pecador, merecedor do fogo do inferno. Fazia um ato de contrição e ansiava pelo sacramento da confissão. Enquanto não recebia a absolvição, vivia como quem morre. A idéia de morte sem redenção me apavorava.
A cada raio nas noites de tempestade, eu via o deus terrível me pedindo reparação da ofensa. Era óbvio que os raios eram dirigidos a este pobre e infame pecador. Megalomania, direis. Que seja. Mas assim eram meus dias. Crianças levam a sério as mentiras que lhes contam. Ou papai Noel não valeria um tostão furado como o mais bem-sucedido promotor de vendas do Ocidente.
Tão a sério, que me tornei carola fervoroso, papa-hóstias indefectível a cada sábado ou domingo. Fui até presidente de Congregação Mariana, juro. Ainda há poucos dias, remexendo meus baús para organizar a partida, foi com terna ironia que encontrei duas fitas de congregado mariano. A estreita, de candidato, e a larga, de filho de Maria. Por cautela, fiz as comunhões das cinco sextas-feiras e a dos nove sábados – ou seriam dos cinco sábados e nove sextas? Já não lembro –, que me garantiam a absolvição antes da morte. Seguro morreu de velho, pensava aquele jovem.
Até o bem-aventurado dia entre os dias – ou talvez seja melhor dizer a noite entre as noites – em que libertei definitivamente dos grilhões com que me manietara a catequista. Já contei, conto de novo. Foi lá pelos 15 anos.Minha doutrina vinha do catecismo. Decidi então beber na fonte. Durante três e dias noites, me encerrei em meu quarto, de Bíblia em punho. Recebia comida por uma janelinha que dava para a cozinha.
À noite, montava um cavalo em pêlo, sem rédeas nem buçal, conduzindo-o pelas crinas e com tapas no focinho. Galopava pelas noites magníficas da pampa, sob um céu cravejado de estrelas, que há décadas não mais vejo. Fazia perguntas ao céu e o céu permanecia mudo.
Meus pais temiam por minha sanidade mental. Ao amanhecer da terceira noite, acordei homem livre. Aquele deus cruel e sanguinário, ciumento e vingativo, sectário e incoerente, não podia existir. Era mentira dos padres. Se havia chegado a esta conclusão, ainda não me libertara do resto do pacote, por sinal a parte mais pesada. Então a vida não tinha sentido? Tanto fazia nascer como não ter nascido? Por que então viver, com todas suas seqüelas? Ora, se perder um deus já faz sofrer, tê-lo roubado é bem mais sofrido.
Meus dias de luto pela perda foram poucos. Era jovem, saudável, a fruição dos prazeres não mais me angustiava. O pecado – esta noção primeva de crime na jurisprudência do Além – desaparecera de minha vida. Mas o mais importante estava um pouco adiante.
Era agora dono de meu nariz. Meus êxitos ou fracassos eram responsabilidade exclusiva minha, não dependiam daquele Cara surgido no deserto (o Deus do Ocidentes nasce das areias).
Tive uma tia muito carinhosa, que se orgulhava de meus feitos escolares. Mas atribuía minhas notas e medalhas ao bom Deus. Nada de meritoso era mérito meu. Eu estava predestinado. Tudo o que me acontecia era por vontade do Altíssimo. Sem o tal de deus, senti-me por fim dono de minha vida. Tudo estava em aberto à minha frente. O prazer não me era mais proibido e havia uma ética a reconstruir. Me senti inaugurando a aurora dos tempos.
Como cachorro que sacode para secar-se, sacudi Deus de mim. Renasci. Ateu, hoje não passa dia sem que alguém me acuse de ser ateu militante. Longe de mim tal idéia. Todo militante tem algo de fanático. Jamais convidei quem quer que fosse a participar de minhas idéias. Tampouco jamais discuti a existência de Deus. É discussão rumo ao inútil. Quando alguém me brande as cinco provas de Tomás de Aquino, retiro meu cavalinho da chuva. O aquinata quer provar a existência de Deus através da lógica. Já vi malucos querendo fazer isto através da matemática.
Isto não quer dizer, é claro, que não discuta a idéia de Deus. Leio a Bíblia como quem lê o Quixote. O Cavaleiro da Triste Figura não existiu. Mas discutimos seus feitos como se existido tivesse.
Conheço pessoas que dizem ter visto Deus. Bom, este eu não vi. Mas, vagando por entre os moinhos de La Mancha, vi o Quixote, de adarga em punho e lança em riste, esporeando o Rocinante, juro que vi. Sempre acabamos vendo o que queremos ver.
Jeová entregou pessoalmente as tábuas a Moisés? Então tá! Vamos ver o que dizem as tábuas. Deus é três-em-um e os três existem desde sempre? Como quiserem. Mas aí começam as perguntinhas. Se pai e filho existiam desde o início, por que o Pai levou séculos a apresentar o Filho à humanidade? Jeová parece ter sido o mais ausente pai do mundo. Em verdade, provoco choro e ranger de dentes quando me abstenho a repetir, literalmente, os textos sagrados, do que quando faço perguntinhas. É como se os crentes não acreditassem que Deus disse o que disse e está escrito em seu livro.
Perdão, leitor, mudei de rumos. Falava da senhora que registrou queixa na delegacia de que haviam roubado seu Deus. O delegado, ao qualificá-la como insana, imagina que só se roubam coisas materiais. Mas roubar o deus de um crente, é bem mais grave do que roubar o carro de um adorador de máquinas.
Ainda mais se não deixam nenhuma bicicleta para o cidadão transportar-se, nenhuma muleta para o pobre diabo apoiar-se. Isto não é coisa que se faça.
15 de fevereiro de 2014
janer cristaldo
Não que me tenham roubado deus. Fui eu mesmo quem o jogou no lixo, ainda em meus verdes anos. Nasci ateu, como nascem todos os seres humanos. Lá pelos seis ou sete anos, quando ainda vivia no campo, uma catequista uruguaia vendeu-me a idéia de deus, daquele deus que ama e pune, conforme o adoremos ou ofendemos.
Fosse só a idéia de deus, o problema não seria tão grave. Era todo um pacote: sentido para a existência, vida eterna, bem-aventurança ou padecimento também eternos. Meus dias decorriam entre o medo e a esperança. Diz-se que a carne é fraca. Ora, a carne é forte. Tão forte que invariavelmente faz o espírito dobrar-se. A cada queda, eu me sentia imundo e pecador, merecedor do fogo do inferno. Fazia um ato de contrição e ansiava pelo sacramento da confissão. Enquanto não recebia a absolvição, vivia como quem morre. A idéia de morte sem redenção me apavorava.
A cada raio nas noites de tempestade, eu via o deus terrível me pedindo reparação da ofensa. Era óbvio que os raios eram dirigidos a este pobre e infame pecador. Megalomania, direis. Que seja. Mas assim eram meus dias. Crianças levam a sério as mentiras que lhes contam. Ou papai Noel não valeria um tostão furado como o mais bem-sucedido promotor de vendas do Ocidente.
Tão a sério, que me tornei carola fervoroso, papa-hóstias indefectível a cada sábado ou domingo. Fui até presidente de Congregação Mariana, juro. Ainda há poucos dias, remexendo meus baús para organizar a partida, foi com terna ironia que encontrei duas fitas de congregado mariano. A estreita, de candidato, e a larga, de filho de Maria. Por cautela, fiz as comunhões das cinco sextas-feiras e a dos nove sábados – ou seriam dos cinco sábados e nove sextas? Já não lembro –, que me garantiam a absolvição antes da morte. Seguro morreu de velho, pensava aquele jovem.
Até o bem-aventurado dia entre os dias – ou talvez seja melhor dizer a noite entre as noites – em que libertei definitivamente dos grilhões com que me manietara a catequista. Já contei, conto de novo. Foi lá pelos 15 anos.Minha doutrina vinha do catecismo. Decidi então beber na fonte. Durante três e dias noites, me encerrei em meu quarto, de Bíblia em punho. Recebia comida por uma janelinha que dava para a cozinha.
À noite, montava um cavalo em pêlo, sem rédeas nem buçal, conduzindo-o pelas crinas e com tapas no focinho. Galopava pelas noites magníficas da pampa, sob um céu cravejado de estrelas, que há décadas não mais vejo. Fazia perguntas ao céu e o céu permanecia mudo.
Meus pais temiam por minha sanidade mental. Ao amanhecer da terceira noite, acordei homem livre. Aquele deus cruel e sanguinário, ciumento e vingativo, sectário e incoerente, não podia existir. Era mentira dos padres. Se havia chegado a esta conclusão, ainda não me libertara do resto do pacote, por sinal a parte mais pesada. Então a vida não tinha sentido? Tanto fazia nascer como não ter nascido? Por que então viver, com todas suas seqüelas? Ora, se perder um deus já faz sofrer, tê-lo roubado é bem mais sofrido.
Meus dias de luto pela perda foram poucos. Era jovem, saudável, a fruição dos prazeres não mais me angustiava. O pecado – esta noção primeva de crime na jurisprudência do Além – desaparecera de minha vida. Mas o mais importante estava um pouco adiante.
Era agora dono de meu nariz. Meus êxitos ou fracassos eram responsabilidade exclusiva minha, não dependiam daquele Cara surgido no deserto (o Deus do Ocidentes nasce das areias).
Tive uma tia muito carinhosa, que se orgulhava de meus feitos escolares. Mas atribuía minhas notas e medalhas ao bom Deus. Nada de meritoso era mérito meu. Eu estava predestinado. Tudo o que me acontecia era por vontade do Altíssimo. Sem o tal de deus, senti-me por fim dono de minha vida. Tudo estava em aberto à minha frente. O prazer não me era mais proibido e havia uma ética a reconstruir. Me senti inaugurando a aurora dos tempos.
Como cachorro que sacode para secar-se, sacudi Deus de mim. Renasci. Ateu, hoje não passa dia sem que alguém me acuse de ser ateu militante. Longe de mim tal idéia. Todo militante tem algo de fanático. Jamais convidei quem quer que fosse a participar de minhas idéias. Tampouco jamais discuti a existência de Deus. É discussão rumo ao inútil. Quando alguém me brande as cinco provas de Tomás de Aquino, retiro meu cavalinho da chuva. O aquinata quer provar a existência de Deus através da lógica. Já vi malucos querendo fazer isto através da matemática.
Isto não quer dizer, é claro, que não discuta a idéia de Deus. Leio a Bíblia como quem lê o Quixote. O Cavaleiro da Triste Figura não existiu. Mas discutimos seus feitos como se existido tivesse.
Conheço pessoas que dizem ter visto Deus. Bom, este eu não vi. Mas, vagando por entre os moinhos de La Mancha, vi o Quixote, de adarga em punho e lança em riste, esporeando o Rocinante, juro que vi. Sempre acabamos vendo o que queremos ver.
Jeová entregou pessoalmente as tábuas a Moisés? Então tá! Vamos ver o que dizem as tábuas. Deus é três-em-um e os três existem desde sempre? Como quiserem. Mas aí começam as perguntinhas. Se pai e filho existiam desde o início, por que o Pai levou séculos a apresentar o Filho à humanidade? Jeová parece ter sido o mais ausente pai do mundo. Em verdade, provoco choro e ranger de dentes quando me abstenho a repetir, literalmente, os textos sagrados, do que quando faço perguntinhas. É como se os crentes não acreditassem que Deus disse o que disse e está escrito em seu livro.
Perdão, leitor, mudei de rumos. Falava da senhora que registrou queixa na delegacia de que haviam roubado seu Deus. O delegado, ao qualificá-la como insana, imagina que só se roubam coisas materiais. Mas roubar o deus de um crente, é bem mais grave do que roubar o carro de um adorador de máquinas.
Ainda mais se não deixam nenhuma bicicleta para o cidadão transportar-se, nenhuma muleta para o pobre diabo apoiar-se. Isto não é coisa que se faça.
15 de fevereiro de 2014
janer cristaldo
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