"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

TE CUIDA, JAYME

Na semana em que se elevam o nome e a memória de Nilton Santos, um dos últimos ícones da grande glória alvinegra que ainda restavam, louva-se, em vida, um sujeito chamado Jayme de Almeida, aquele que era o interino, de semblante sereno, paciente e alerta como um caixa de botequim, sem discurso feito, sem roupas espalhafatosas, sem terno, sem cabelo: só os óculos de lente grossa, lusitanos.

A tripulação da nau estava furiosa com Mano Menezes, que saíra de fininho, o capitão fujão, dizendo que não o entenderam. O plantel se sentiu chamado de burro por aquele comandante colonizado pelo que se faz além-mar, e de costas para o país.
Então vem Jayme, com aquela placidez, chamando de meu filho, pregando humildade, feijão com arroz, bola baixa e alma.

A diretoria, ocupada em humilhar a torcida com a política classista, preconceituosa, de preços (e cheia de reestruturação de finanças, vaidade, marketing e dívida na cabeça), nada teve a ver com o que ora se festeja. Jayme era só o interino. O tapa-buraco.

E o Flamengo renasceu pelas mãos de Jayme. Um Flamengo que há muito não se via, cujo conjunto em campo transcende os nomes do elenco e se traduz numa coreografia ancestral, resultante da própria história.

Um Flamengo rápido, envolvente, raçudo, disposto, que se infiltra e cerca o adversário até a explosão da enorme torcida.

Alguns de meus amigos alvinegros podem ficar magoados por eu estar aqui exaltando um evento rubro-negro em vez de prestar minhas loas a Nilton Santos. Mas falar de Jayme de Almeida é homenagear Nilton Santos. O futebol de hoje anda carente de símbolos contemporâneos, de algo maior que o jogo e que as cifras. A fibra de um coletivo está em unir-se, de tempos em tempos, em torno de uma certa ideia de pertencimento a alguma coisa que está além das diretorias, mortais, do “elenco no papel” e até da própria instituição.

Algo que não está no indivíduo, e sim no senso coletivo. Uma força que une tradição, informação, cognição, iconografia, psicologia de massa e até a distribuição de diferentes “personagens” em campo. Um apelo à alma em vida, que nada tem de sobrenatural, e que é captado quando um grupo evoca, nas trevas, um ânimo de redenção que está no ar. Mas onde?

Esse Flamengo mítico varia, é claro, na percepção de cada um, mas existe aí uma interseção, uma síntese, que só ressurge quando há esta aliança. Isso ocorre com qualquer clube. Há um Botafogo mítico que não é só o dos registros de seu passado ou de seus nomes, Nilton, Mané, Didi... Tem mais ver com o amadorismo de suas origens, temperado pela neurose herdada da glória dos anos 1960 e pelo limbo no qual caiu.
Guiado pela sua estrela solitária, messias de luz, o Botafogo, quando renasce, vem imerso numa pose de excelência que, mesmo se não produz resultados, marca época. 

O Fluminense tem a etiqueta da persistência paciente, das baterias armadas, da técnica, forjadas nas tempestades e polvilhadas de arroz. E o Vasco... sei lá, linhas diagonais, lançamentos longos, velocidade, sobras na área, a virada, vá saber.
Lógico que tudo isso é muito vago, muda conforme o andor, mas há com certeza um substrato, uma síntese, um sumo que se expressa, que aparece, límpido, óbvio, nesses momentos de feliz conjunção, como o que ocorreu agora.

Por isso, a diretoria do Flamengo tem que fugir como o diabo da cruz da tentação de, ao primeiro revés, substituir aquele que tem, nas costas, a mancha do interino, a pecha do anonimato prévio, a maldição da humildade perene. A demissão de Andrade ainda ecoa na memória com os sinos do absurdo. A prevalecer a lógica perversa da atualidade, Jayme levará um bico na primeira campanha menos brilhante, e o espectro do “nome de peso” voltará a rondar a Gávea.

Quando isso acontecer, quem vai se lembrar da aliança que levou o clube, num ano melancólico, a levantar uma taça tão improvável, numa campanha coroada com a eclosão de sua plena identidade, e ainda enfeitada com as bodas de Leonardo Moura?
O tempo do futebol mudou, e o homem que hoje poliu a alma do povo pode amanhã estar recebendo aviso prévio por e-mail.

Te cuida, Jayme. Deixa malocadas no armário, por via das dúvidas, umas roupas espalhafatosas, um terno, um gel de cabelo, para o caso de as circunstâncias exigirem a carnavalização. Aí, escolhe se veste a fantasia e ri dos palhaços ou se sai de fininho, mas, diferente do Mano: nos braços da galera, antes que a roda-vida te passe uma rasteira.

E o Botafogo, hem? A obrigação, agora, virou ultimato: Nilton Santos se foi.
Passar 80% do campeonato entre os quatro e deixar escorrer no final não é algo que deveria ter a cara de Botafogo, embora tenha virado uma espécie de sina, marca.
Há um outro Botafogo, oculto como estava o Fla, que precisa despertar, e, com ele, a torcida. Oswaldo é bom, trouxe sangue novo, alçou a garotada. Mas bateu na alma? Quem será o nosso Jayme, que virá das entranhas e guiará o povo da estrela rumo a si?
 
02 de dezembro de 2013
Arnaldo Bloch é Jornalista. Originalmente publicado em O Globo em 30 de novembro de 2013.
 

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