Acompanho a comemoração na imprensa em torno da votação do Supremo Tribunal Federal que caminha na direção de “proibir” o financiamento de campanhas eleitorais por empresas privadas e bate-me um desânimo ancestral.
Alguém acredita que de fato vai cessar a roubalheira na construção de estradas, de metrôs, de hidrelétricas; na saúde pública, na construção de escolas, na escolha dos livros didáticos comprados pelo governo, na merenda escolar, na compra de remédios e ambulâncias, na expedição de alvarás para construções privadas, na fiscalização de feiras, bares e restaurantes, do guarda que troca a multa por 50 paus – vá lá! escolha você mesmo! – se o Supremo Tribunal Federal proibir o financiamento de campanhas eleitorais com doações de empresas privadas?
Alguém acredita que o horário eleitoral gratuito se tornará menos mentiroso e nefasto se o direito que os político se outorgam de mentir pela gorja sem contraditório em rede nacional em horário nobre for financiado só com dinheiro público?
Alguém acredita que as próprias doações de campanha cessarão apenas porque os meritíssimos assim decidiram? Que foi por falta de alguém ter essa boa ideia que vimos sendo roubados ha 513 anos?
E o PT, que levantou esta bandeira exatamente a partir do minuto em que chegou “lá” e nem um segundo antes, fê-lo para que o país deixe de “ser”, ou para ficar sozinho distribuindo bolsas, isenções de impostos, quebrando a Petrobras pra encher o tanque da freguesia a preço eleitoralmente conveniente, destruindo a indústria nacional a custa de aumentos de salário sem aumentos de produtividade, sustentando o consumo contratando dívida e inflação futuras e o mais que a gente sabe, sem mais ninguém na raia?
Porque a imprensa se presta a dar ares de seriedade a tapeação tão evidente e antiga? Ela não consulta os seus próprios arquivos? Os livros de história pra se lembrar de ha quanto tempo a gente que nos explora vive de remexer o acessório para manter como está o principal?
Não, o vício é nacional; não é só dos políticos. Mais que isso, o vício é cultural. Irmana meia humanidade.
Regulamentar o irregulamentavel. Encher bibliotecas inteiras de leis e leis sobre leis sem perder um minuto sequer com considerações praticas sobre a factibilidade de aplica-las. Discutir infindavelmente sobre o nada com uma retórica grandiloquente. Fazer revoluções em palanques, em tribunas e em mesas de bar.
Eis as marcas do DNA latino!
Até as mensagens do Twitter já se propôs regulamentar nos espasmos legisferantes da presente temporada. O que virá depois? O Facebook e o resto da internet? E então a definição das conversas e sussurros regulares e irregulares nas praças públicas?
E que tal começar pelo final, como fizeram os países onde de fato existe democracia? Que tal declarar todo mundo – a começar pelo “rei” – igual a todo mundo perante “A Lei”? Ter um único foro de julgamento para todos? Uma única prisão para quem quer que queira pisar deliberadamente no tomate?
Um ou no máximo dois recursos de julgamento?
A doença degenerativa do Brasil chama-se impunidade.
De modo que acabar com a impunidade faria mais pela cura da nossa chaga política e de todas as outras que ela abre e infecciona do que mais 50 decisões do STF sobre a periferia da regra eleitoral.
“Ah, mas se formos esperar o Congresso a reforma política não sai nunca”!
Não sai mesmo.
Mas a função do Judiciário não é tomar o lugar dos legisladores sob esse pretexto. A função do Judiciário é enquadrar os legisladores na lei que eles próprios escrevem. Na única lei que deveria viger no país, igual para todos.
É fazer isso que o resto acontece sozinho!
E impunidade não é só a dos ladrões e dos outros criminosos que nos mantêm trancados e acuados porque com eles o Judiciário é tão mole quanto é largo o bolso de advogados e juízes com poderes para decidir a seu bel prazer quem vai e quem não vai para a jaula.
Impunidade é também a do representante que trai o seu representado e vende o seu mandato para quem e quantas vezes quiser.
Para essa vertente da doença nacional existe o remédio do voto distrital com recall, que amarra cada político eleito a um grupo claramente identificado de eleitores, e dá a esses eleitores o direito de cassar-lhes essa representação quando quiserem e pelo motivo que quiserem, como prescreve a Constituição que diz que “todo poder emana do povo e em seu nome será exercido”.
“O problema”, eu não me canso de repetir com Theodore Roosevelt, “não é haver corrupção, condição inerente ao ser humano. O problema é o corrupto poder exibir o seu sucesso, o que é subversivo”.
O problema, vale dizer em termos mais focados no caso em discussão, não é a exposição dos agentes públicos ao poder econômico, o que é absolutamente inevitável; o problema é não poder punir quem é pego abusando dele. E ninguém sabe disso melhor que este STF que tenta, ha oito anos, enfiar e manter meia dúzia de salafrários na prisão e não consegue.
Faria muito mais por nossa remissão esse Supremo Tribunal se tratasse de olhar para o próprio umbigo e acabar com os “embargos infringentes”, a meia dúzia de “tribunais especiais” para “pessoas especiais” e os outros 20 mil recursos que mantém à disposição dos bandidos comuns com carteira recheada que provam todos os dias a cada brasileirinho e cada brasileirinha, desde que nasce, seja na Vieira Souto, seja no Morro do Alemão, que sim, o crime compensa.
E vale repetir: as sociedades funcionam como cadeias de transmissão de forças nas quais o elemento mais próximo do povo, a fonte de onde emana a legitimidade dos demais poderes, é a imprensa.
Enquanto ela seguir obrigando-se, por um suposto “imperativo ético” inventado em nossas escolas aparelhadas, a amplificar as iniciativas dos poderes constituídos emprestando-lhes ares de seriedade, eles seguirão tão confortavelmente refesteladas na mentira quanto estão hoje.
29 de dezembro de 2013
vespeiro
Artigo publicado em O Estado de S. Paulo de 21/12/2013
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