Diferença do status do negro nas sociedades americana e brasileira, uma racista e outra pretensamente não, pode ser encontrada na quantidade de pianistas negros
Há muitas maneiras de se medir progresso, ou pelo menos mudanças históricas, além dos frios números de uma economia ou além da sociologia convencional. Muitas vezes o detalhe que não é notado é o mais revelador.
O Marshall McLuhan (lembra dele?) construiu uma tese inteira em cima da importância da invenção do estribo de cavalo na história do Ocidente. O estribo significou que o aristocrata também passasse a participar das batalhas junto com o pobre soldado a pé, com tudo que isso implicava de novo em questões como relações hierárquicas — e de mortandade entre aristocratas.
A história das armas de guerra, que no fim é a história da civilização, pode ser medida em detalhes como o aumento da distância possível para se matar um inimigo, começando com o olho no olho e o tacape na mão do tempo das cavernas, passando pela espada, a lança, o arco e flecha, a catapulta, o mosquete, o fuzil, o canhão, o bombardeio aéreo, etc. e culminando no drone teleguiado, o mais longe que se pode chegar do inimigo sem precisar olhar no seu olho.
Ainda não foi tema de nenhum tratado sociológico, que eu saiba, mas a diferença entre o status do negro nas sociedades americana e brasileira, uma evidentemente racista e outra pretensamente não, pode ser encontrada em um detalhe, a quantidade de pianistas negros nos Estados Unidos em contraste com quase nenhum no Brasil.
O jazz teve duas vertentes, três se você contar os blues: as bandas de rua, que desfilavam, obviamente, sem pianos, e o ragtime, que era jazz exclusivamente de piano, já tocado, lá nas origens, por músicos negros como Jelly Roll Morton. Pianistas negros pressupõem piano em casa, dinheiro para pagar as aulas, tempo para praticar — ou seja, pressupõem uma classe média.
Em Nova Orleans e em outras capitais do Sul dos Estados Unidos, em meio ao apartheid oficial, à discriminação aberta, aos linchamentos e outros horrores, desenvolveu-se uma classe média negra, paralela à branca, com identidade e poder econômico próprios. No Brasil do racismo que não se reconhece como tal, e talvez por causa disto, não aconteceu nada parecido.
Claro, a história econômica dos dois países explica o contraste, mais do que racismo declarado ou disfarçado, mas neste detalhe a diferença fica clara. No Brasil, como nos Estados Unidos, existem grandes músicos saídos de todas as classes sociais. Mas ainda não produzimos pianistas negros em número suficiente para desmentir a nossa hipocrisia racial.
Há muitas maneiras de se medir progresso, ou pelo menos mudanças históricas, além dos frios números de uma economia ou além da sociologia convencional. Muitas vezes o detalhe que não é notado é o mais revelador.
O Marshall McLuhan (lembra dele?) construiu uma tese inteira em cima da importância da invenção do estribo de cavalo na história do Ocidente. O estribo significou que o aristocrata também passasse a participar das batalhas junto com o pobre soldado a pé, com tudo que isso implicava de novo em questões como relações hierárquicas — e de mortandade entre aristocratas.
A história das armas de guerra, que no fim é a história da civilização, pode ser medida em detalhes como o aumento da distância possível para se matar um inimigo, começando com o olho no olho e o tacape na mão do tempo das cavernas, passando pela espada, a lança, o arco e flecha, a catapulta, o mosquete, o fuzil, o canhão, o bombardeio aéreo, etc. e culminando no drone teleguiado, o mais longe que se pode chegar do inimigo sem precisar olhar no seu olho.
Ainda não foi tema de nenhum tratado sociológico, que eu saiba, mas a diferença entre o status do negro nas sociedades americana e brasileira, uma evidentemente racista e outra pretensamente não, pode ser encontrada em um detalhe, a quantidade de pianistas negros nos Estados Unidos em contraste com quase nenhum no Brasil.
O jazz teve duas vertentes, três se você contar os blues: as bandas de rua, que desfilavam, obviamente, sem pianos, e o ragtime, que era jazz exclusivamente de piano, já tocado, lá nas origens, por músicos negros como Jelly Roll Morton. Pianistas negros pressupõem piano em casa, dinheiro para pagar as aulas, tempo para praticar — ou seja, pressupõem uma classe média.
Em Nova Orleans e em outras capitais do Sul dos Estados Unidos, em meio ao apartheid oficial, à discriminação aberta, aos linchamentos e outros horrores, desenvolveu-se uma classe média negra, paralela à branca, com identidade e poder econômico próprios. No Brasil do racismo que não se reconhece como tal, e talvez por causa disto, não aconteceu nada parecido.
Claro, a história econômica dos dois países explica o contraste, mais do que racismo declarado ou disfarçado, mas neste detalhe a diferença fica clara. No Brasil, como nos Estados Unidos, existem grandes músicos saídos de todas as classes sociais. Mas ainda não produzimos pianistas negros em número suficiente para desmentir a nossa hipocrisia racial.
29 de dezembro de 2013
Luis Fernando Veríssimo, O Globo
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