Como contestar e questionar um sistema e ao mesmo tempo fazer parte dele? É uma equação difícil, que nem todos conseguem solucionar
Acordo na segunda-feira com alguém me dizendo “O Champignon morreu”. Corro para a internet e descubro que o Champignon, Luiz Carlos Leão Duarte Júnior, grande baixista e figura querida no rock brasileiro, se suicidara naquela madrugada com um tiro na cabeça. A notícia me surpreende e entristece. É triste saber que um cara jovem, ativo e excepcionalmente talentoso, cuja mulher estava grávida de cinco meses, tenha morrido. Surpreende que o motivo dessa morte seja o suicídio. Por quê?, me pergunto.
Só o amor constrói pontes indestrutíveis
Eu não conhecia o Champignon intimamente. Como colegas de profissão, nos esbarrávamos esporadicamente em festivais, aeroportos, estúdios, saguões de hotel, bastidores de programas de televisão, palcos e camarins. Champignon era um sujeito simpático e boa-praça, que exalava alegria de viver. O tipo do cara que você nunca diria que se suicidaria. Há pouco tempo, Chorão, companheiro de Champignon no Charlie Brown Júnior, morreu de overdose. O Charlie Brown sempre foi um grupo muito positivo em suas letras, como a que diz que só o amor constrói pontes indestrutíveis. Entretanto, por trás de toda a positividade e urgência de viver preconizadas pela banda, rolavam também angústia, dúvida e depressão, como comprovam as mortes recentes de seus mais célebres integrantes.
‘Livin’ la vida loca’
A morte do Champignon me remete à morte de Kurt Cobain. Ainda que o cantor, guitarrista e compositor norte-americano fosse aparentemente mais depressivo que seu colega brasileiro, é sempre surpreendente que um roqueiro bem-sucedido se suicide. Estrelas de rock parecem habitar o topo do mundo e realizam o sonho de milhares de garotos pelo planeta, que é o de ficar famoso e conseguir sobreviver de sua música, desfrutando do estilo de vida do rock. O problema é justamente esse estilo de vida. Embora pareça bastante glamouroso, ele às vezes cobra um preço alto. Conviver com esse paradoxo é insuportável para algumas pessoas. Como contestar e questionar um sistema e ao mesmo tempo fazer parte dele? É uma equação difícil, que nem todos conseguem solucionar. Leio que Champignon enfrentava também alguns problemas financeiros. Bem, não preciso ir além do espelho para encontrar gente que vive a pressão da “vida loca” e tem problemas financeiros. Nada disso explica por que o Champignon se suicidou.
O mito de Sísifo
O escritor francês Albert Camus escreveu que “o suicídio é a grande questão filosófica de nosso tempo, decidir se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma pergunta fundamental da filosofia”. Analisando o mito grego de Sísifo — aquele que ousou desafiar os deuses e foi condenado a carregar eternamente uma pedra morro acima para depois que ela escorregasse morro abaixo conduzi-la novamente ao topo —, Camus compara a situação do homem diante do absurdo da existência ao personagem grego condenado ao castigo eterno. O escritor pergunta-se se a realização do absurdo da vida exige o suicídio. Não, ele conclui. Exige revolta.
Tabu
Humberto Corrêa, presidente da Comissão de Estudos e Prevenção ao Suicídio da Associação Brasileira de Psiquiatria, afirma em artigo publicado na terça-feira na “Folha de S.Paulo”, que “o suicídio é um tabu social, mas também um problema de saúde pública”. Ele diz que algo em torno de 9.000 óbitos decorrentes de suicídios acontecem anualmente no Brasil, mas que ainda assim o suicídio é um assunto proibido e não existem campanhas de saúde pública para tratar o tema. “Sabemos hoje que praticamente 100% dos suicidas têm um transtorno psiquiátrico que muitas vezes não fora, entretanto, diagnosticado ou corretamente tratado”.
Todas as religiões condenam a prática, e algumas negam aos suicidas as honras fúnebres. Embora a maioria dos Estados não criminalize mais o suicídio, já houve época em que a prática era punida em alguns lugares até com a pena de morte. Dá para imaginar um paradoxo mais absurdo?
Um dia ideal para os peixes-banana
No conto “Um dia ideal para os peixes-banana”, J. D. Salinger faz talvez a mais contundente descrição de um suicídio de toda a literatura. E a contundência de sua descrição se caracteriza justamente pela quase banalidade com que é construída. Talvez não exista mesmo nenhuma explicação para o suicídio do Champignon. Talvez os suicídios aconteçam em dias comuns, como hoje, um dia ideal para os peixes-banana, nos deixando a todos com o travo da estupefação na boca.
Acordo na segunda-feira com alguém me dizendo “O Champignon morreu”. Corro para a internet e descubro que o Champignon, Luiz Carlos Leão Duarte Júnior, grande baixista e figura querida no rock brasileiro, se suicidara naquela madrugada com um tiro na cabeça. A notícia me surpreende e entristece. É triste saber que um cara jovem, ativo e excepcionalmente talentoso, cuja mulher estava grávida de cinco meses, tenha morrido. Surpreende que o motivo dessa morte seja o suicídio. Por quê?, me pergunto.
Só o amor constrói pontes indestrutíveis
Eu não conhecia o Champignon intimamente. Como colegas de profissão, nos esbarrávamos esporadicamente em festivais, aeroportos, estúdios, saguões de hotel, bastidores de programas de televisão, palcos e camarins. Champignon era um sujeito simpático e boa-praça, que exalava alegria de viver. O tipo do cara que você nunca diria que se suicidaria. Há pouco tempo, Chorão, companheiro de Champignon no Charlie Brown Júnior, morreu de overdose. O Charlie Brown sempre foi um grupo muito positivo em suas letras, como a que diz que só o amor constrói pontes indestrutíveis. Entretanto, por trás de toda a positividade e urgência de viver preconizadas pela banda, rolavam também angústia, dúvida e depressão, como comprovam as mortes recentes de seus mais célebres integrantes.
‘Livin’ la vida loca’
A morte do Champignon me remete à morte de Kurt Cobain. Ainda que o cantor, guitarrista e compositor norte-americano fosse aparentemente mais depressivo que seu colega brasileiro, é sempre surpreendente que um roqueiro bem-sucedido se suicide. Estrelas de rock parecem habitar o topo do mundo e realizam o sonho de milhares de garotos pelo planeta, que é o de ficar famoso e conseguir sobreviver de sua música, desfrutando do estilo de vida do rock. O problema é justamente esse estilo de vida. Embora pareça bastante glamouroso, ele às vezes cobra um preço alto. Conviver com esse paradoxo é insuportável para algumas pessoas. Como contestar e questionar um sistema e ao mesmo tempo fazer parte dele? É uma equação difícil, que nem todos conseguem solucionar. Leio que Champignon enfrentava também alguns problemas financeiros. Bem, não preciso ir além do espelho para encontrar gente que vive a pressão da “vida loca” e tem problemas financeiros. Nada disso explica por que o Champignon se suicidou.
O mito de Sísifo
O escritor francês Albert Camus escreveu que “o suicídio é a grande questão filosófica de nosso tempo, decidir se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma pergunta fundamental da filosofia”. Analisando o mito grego de Sísifo — aquele que ousou desafiar os deuses e foi condenado a carregar eternamente uma pedra morro acima para depois que ela escorregasse morro abaixo conduzi-la novamente ao topo —, Camus compara a situação do homem diante do absurdo da existência ao personagem grego condenado ao castigo eterno. O escritor pergunta-se se a realização do absurdo da vida exige o suicídio. Não, ele conclui. Exige revolta.
Tabu
Humberto Corrêa, presidente da Comissão de Estudos e Prevenção ao Suicídio da Associação Brasileira de Psiquiatria, afirma em artigo publicado na terça-feira na “Folha de S.Paulo”, que “o suicídio é um tabu social, mas também um problema de saúde pública”. Ele diz que algo em torno de 9.000 óbitos decorrentes de suicídios acontecem anualmente no Brasil, mas que ainda assim o suicídio é um assunto proibido e não existem campanhas de saúde pública para tratar o tema. “Sabemos hoje que praticamente 100% dos suicidas têm um transtorno psiquiátrico que muitas vezes não fora, entretanto, diagnosticado ou corretamente tratado”.
Todas as religiões condenam a prática, e algumas negam aos suicidas as honras fúnebres. Embora a maioria dos Estados não criminalize mais o suicídio, já houve época em que a prática era punida em alguns lugares até com a pena de morte. Dá para imaginar um paradoxo mais absurdo?
Um dia ideal para os peixes-banana
No conto “Um dia ideal para os peixes-banana”, J. D. Salinger faz talvez a mais contundente descrição de um suicídio de toda a literatura. E a contundência de sua descrição se caracteriza justamente pela quase banalidade com que é construída. Talvez não exista mesmo nenhuma explicação para o suicídio do Champignon. Talvez os suicídios aconteçam em dias comuns, como hoje, um dia ideal para os peixes-banana, nos deixando a todos com o travo da estupefação na boca.
15 de setembro de 2013
TONY BELLOTO, O GLOBO
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