Quando Celso de Mello lia seu voto no Supremo Tribunal (STF), eu visitava a trabalho um presídio da Paraíba. Como em todos os outros que visitei no Brasil, havia superlotação e dezenas de pessoas presas por lentidão da Justiça ou falta de advogado. Diante dos meus olhos, é evidente que a Justiça tarda a prender os poderosos e a soltar os desprotegidos.
Os que poderiam ser soltos num mutirão de Justiça continuam por lá. E o pior é que o nó no sistema penitenciário não se desata libertando alguns, porque há mais de 300 mil mandados de prisão não cumpridos. É um problema que empurramos para as novas gerações.
O voto de Celso de Mello encerrou uma fase. A nova agenda do STF, embora trate de problemas importantes para os interessados (aposentadoria, ressarcimento de planos econômicos), tende a ser uma espécie de Boa Noite Cinderela para os espectadores. A cena política já é comandada pelas eleições. A maioria das pessoas ainda não seu deu conta e muitos não vão interessar-se por ela quando chegar ao seu apogeu. Mas os passos são cadenciados pela busca de votos.
O governo não esconde seu jogo. O programa Mais Médicos trouxe um enfrentamento que talvez retarde a presença real dos médicos. Mas dá votos. É melhor um médico estrangeiro do que nenhum médico? Essa é a pergunta que realmente toca quem vive no interior.
A espionagem dos EUA é outro assunto em que o marketing político entra em cena. O Brasil tinha mesmo de protestar, mas não basta. Era preciso um projeto real de defesa de dados, que não existe. A uma reunião internacional sobre o tema o Brasil mandou uma estagiária. A mensagem clara que leio nisso tudo é: enfrentar os EUA dá votos, em especial quando nos espionam. Não importam os dados que possam levar, o importante é a oportunidade de enfrentá-los.
Os escândalos sucedem-se. Explodem no Ministério do Trabalho e no da Previdência, no Palácio do Planalto, mas são o tipo de notícia que você julga já ter lido antes em algum lugar...
Na reeleição, o governante ocupa o centro da cena, praticamente como candidato único. Os outros só saem da semiobscuridade quando o processo já é oficial. Eleições são corrida de longo alcance. Largar com muitos corpos na frente, uma grande vantagem.
Ainda que não haja grandes fatos novos no período, 2014 vem carregado de promessas: eleições, Copa do Mundo, julgamento (ufa!) do mensalão. Um dos grande problemas de um clima eleitoral comandado pelo marketing é a falta de debates reais sobre os caminhos do País.
Estamos vivendo em muitas dimensões diferentes e a política não consegue integrá-las. O leilão do campo de Libra é um excelente motivo para avaliar o modelo do pré-sal. As gigantes americanas não vieram porque talvez preferissem o antigo regime de concessão. Outras empresas, principalmente chinesas, indianas e europeias, concorrem. Os chineses têm recursos e disposição para explorar o pré-sal. Mas, por outro lado, são menos pressionados pelo Parlamento e pela opinião pública de seu país - e essa pressão é uma das garantias nos cuidados ambientais. De qualquer modo, o pré-sal também será tema de campanha. Dilma orientou seus ministros a celebrarem qualquer leilão com otimismo.
Embora deputados e senadores se batam pelos recursos do petróleo, ainda falta um debate sobre o futuro do pré-sal. Será que é toda essa maravilha? Eike Batista tombou no caminho, segundo ele, iludido por inúmeros pareceres técnicos animadores, pelo entusiasmo dos especialistas. Às vezes o otimismo não se concentra só no petróleo a descobrir, mas no futuro econômico desse recurso não renovável. O impulso chinês na área da energia solar e a intensa exploração do xisto pelos norte-americanos nos indicam um cenário cambiante, embora seja difícil projetar o impacto desses esforços por novas fontes.
O marketing político arrasta tudo para respostas simples, em que escolhe estatisticamente o lado a adotar. Se alguém diz que a Petrobrás foi mal administrada e viveu um péssimo período nas mãos de PT e PMDB, a reação é: "Você está querendo privatizar a Petrobrás?" Se afirmamos que o programa Mais Médicos apenas atenua o problema da saúde, sobrecarregada por ineficácia, corrupção e aparelhamento político, vem a contestação: "Você prefere ver os pobres sem nenhum médico?".
É um duelo que se estende por toda a campanha, sobretudo na economia. Reduzir os gastos da máquina? E o desemprego, os serviços básicos?
Não é, porém, uma briga de gato e rato. É possível sobreviver a ela e lançar algumas ideias. Não sei se alguma força política conseguirá galvanizar o interesse dos eleitores. Mas eleições seriam bem interessantes se pudessem afirmar teses como os fins não justificam os meios, o estímulo ao consumo não é o único dínamo de uma economia que precisa de investimento e educação, o Congresso não pode viver de joelhos diante do Planalto, a transparência e o acesso aos documentos públicos serão ampliados, os impostos serão devolvidos com serviços públicos decentes, política externa nacional, e não partidária. Um projeto desse tipo só é possível a um governo democrático no sentido de que não vê a sociedade só como consumidora de serviços, mas como importante personagem na mudança.
Numa banca de jornal no Rio, examinava capas de revistas e ouvi uma senhora dizer a outra: "Mensalão? Nem quero saber mais dessa história". Ela estendia sua rejeição a todo o sistema político. E deve ficar algum tempo assim. Cedo ou tarde, talvez no ano que vem, terá de voltar ao tema. Ela e milhares de outras pessoas vão perguntar se vale a pena o processo eleitoral. Essa é uma das grandes perguntas que o sistema político terá para responder em 2014. Máxime agora que caiu a ilusão sobre homens e mulheres de capa preta, embargos de declaração, recursos infringentes e tudo o mais.
Foi um longo inverno. Ao menos na natureza, podemos contar com a primavera.
27 de setembro de 2013
Fernando Gabeira, O Estado de S.Paulo
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