O antropólogo Lévi-Strauss achou em 1935 que a Baia de Guanabara parecia uma boca banguela, o escritor argentino Roberto Arlt ficou chocado em 1930 com a falta de classe dos bacanas na Rua do Ouvidor. Às vésperas de fazer 453 anos na quinta-feira, tiroteio para tudo que é lado, seria moleza seguir com essas críticas e comemorar o aniversário do Rio de Janeiro executando ao fundo do texto, com os trombones do deboche irônico, a marchinha “Cidade Maravilhosa”. Seria fácil. Ecoaria o desconforto geral, resultaria numa gargalhada triste e compartilhamentos na internet — mas não seria justo. A cidade é inocente.
Isso aqui é o Rio de Janeiro e quem tropeça por essas beiradas há mais tempo já viu de tudo, sobreviveu à explosão do paiol de Deodoro, acelerou o carro quando a tarde caiu feito um viaduto, deu para o santo aquela que em seguida matou o guarda — enfim, sabe o suficiente das armadilhas da vida para escrever no muro da Urca o mesmo que o Neymar tatuou no pescoço: “Tudo passa”.
OS BISPOS PASSAM – Arthur Bispo do Rosário também era do tipo maluco, mas benigno, e seus estandartes anunciavam com arte o dia do Juízo Final. Houve bispo de fundo cenográfico, como o Largo da Mãe do Bispo, na primeira encarnação da Cinelândia. E atualmente há o fotógrafo Jorge Bispo, que num apartamento 302 do Alto Leblon fotografa mulheres de todos os formatos, nuas gordas, nuas magras, em todas as poses de seus corpos cotidianos, e faz com que elas se percebam orgulhosamente admiráveis.
Acima de todos, o bispo maior da cidade é José Bispo Clementino dos Santos, alcunhado na pia batismal do samba como Jamelão. Crooner da orquestra Tabajara de Severino Araújo, durante um baile de debutantes do Clube dos Suboficiais e Sargentos da Aeronáutica, em Cascadura, Bispo Jamelão molhou a garganta com o conhaque de Alcatrão de São João da Barra e, para a eternidade dos tempos, interpretou Lupicínio Rodrigues. O samba-canção ainda ecoa na noite da Zona Norte e inspira a fé carioca de que a falsa santidade passa, a santa fúria dos humilhados fica, e, vingança, vingança, todo esse mal há de rolar como as pedras da estrada.
SANTA PIADA – No início de tudo havia o verbo e já então, nas urdiduras sagradas da Criação, diante da necessidade de explicar porque agraciava este canto do planeta com tantas maravilhas da natureza, Ele fez a primeira santa piada e numa das versões dela disse que equilibraria as coisas quando botasse uma gente de quinta para governar.
Não deu outra. Nelson Rodrigues, o menino do Recife que veio morar na Aldeia Campista, diria que estava escrito há dois mil anos — e só isso, a fatalidade bíblica, explica os mendigos jogados no Guandu, os ciclistas engolidos pela ressaca na Niemeyer, as crianças mortas pelas balas perdidas, a demolição do Morro do Castelo, o alargamento da praia de Copacabana e o portão fechando na cara da Velha Guarda da Portela.
O pezão pesado também passa. Já houve outro tipo dele na cena carioca. Eram adoráveis. Os irmãos Pixinguinha e China calçavam 44 e foi nesses pisantes de número avantajado que Sinhô mirou quando os três se enfrentaram, no início do século passado, em folclóricas disputas sobre a autoria de “Pelo telefone” e outras pendências advindas das vaidades nos terreiros fundadores do samba.
PÉ DE ANJO – Chamar o inimigo de “pezão” seria óbvio demais para o autor de uma delicadeza como “Jura”. Eis então que Sinhô, cujo número do calçado a história não registrou, tripudia sobre os inimigos de sapatos exagerados com a marchinha “Pé de anjo”. Foi o maior sucesso do carnaval de 1920. No título ironizava o adversário pelo avesso e na letra ia direto ao ponto, dizendo “tens um pé tão grande que és capaz de pisar Nosso Senhor”.
Mais adiante, Pixinguinha gravaria “André de sapato novo”, chorinho composto por outro pezão benigno, André Vitor Correia, que sofria com sapatos sempre justos. A música tem breque, um Mi grave que no saxofone de Pixinguinha parecia simbolizar o calo gritando a dor.
CALOS DOLOROSOS – Uma cidade com 453 anos de existência enfrenta calos dolorosos de todos os tipos e contra eles respeita-se o uso das palmilhas do Dr. Scholl’s da Barata Ribeiro, os banhos de erva de Mãe Oxóssi da Visconde de Pirajá, os milagres de Odetinha do cemitério de São João Batista e os banhos de permanganato de potássio da caixa do Supermercado Mundial de Inhaúma. Vale tudo.
Em nada dando certo, recomenda-se finalmente tentar o pragmatismo cívico do “Para evitar calos, não se meta em apertos”, a filosofia suburbana de Millôr Fernandes, o garoto do Méier, vizinho da Boca do Mato, o bairro onde morava mãe Clementina de Jesus, logo ali ao lado de Todos os Santos, depois vem Piedade, e que assim seja, o Rio se salve, amém.
27 de fevereiro de 2018
Joaquim Ferreira dos Santos
O Globo
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