Visto da plateia de 40 lugares, ao fundo da sala pequena e atravancada – a mesma em que ocorrerá o julgamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no próximo dia 24 –, o rosto do desembargador Leandro Paulsen, com barba, bigode e olheiras, lembra o do pintor Van Gogh nos melhores dias. À sua esquerda e direita, do mesmo ângulo, mais à frente, formando um U, estão os desembargadores João Pedro Gebran Neto e Victor Luiz dos Santos Laus, ambos grisalhos. Formam a 8.ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região. Não dão entrevistas. Só se manifestam nos autos – e nas sessões da 8.ª Turma, responsável por julgar os recursos às decisões de primeira instância da Operação Lava Jato, leia-se juiz Sérgio Moro, mas não só.
Em julho passado, por exemplo, uma sessão vesperal que o Estado acompanhou do início ao fim começou com um caso de extradição, seguido por outros de tráfico de drogas, e mais alguns da Lava Jato.
OS TRÊS JUÍZES – Se há um advogado na tribuna, Gebran Neto o olha diretamente. Saltam à vista o enorme relógio que traz ao pulso esquerdo, o constante cruzar de pernas e as mãos inquietas. Laus está sempre empertigado, a coluna reta, de olho fixo na tela do computador, onde estão os autos. Muito de vez em quando dá uma olhada direta a quem ocupe a tribuna. O presidente Paulsen também prefere olhar o computador. Os dois já se adaptaram aos processos virtuais, sem papéis, orgulho do TRF-4. Gebran Neto ainda não: sua mesa tem diversos impressos de partes dos casos em discussão.
Dos três, só Santos Laus, 54 anos, tem uma história singular sobre sua entrada no tribunal – que foi contestada por um colega magistrado no Supremo Tribunal Federal. Egresso do Ministério Público Federal, o procurador da República foi nomeado para o TRF-4 em 30 de dezembro de 2002, pelo ainda presidente Fernando Henrique Cardoso.
NOMEAÇÃO LEGAL -Em abril de 2003, o juiz federal Rômulo Pizzolatti, achando-se preterido, impetrou um mandado de segurança no STF (MS 24502). Argumentava que Laus fora nomeado sem observância da ordem de vacância dos cargos – que a seu entendimento deveria beneficiá-lo, por ser o mais velho entre os juízes de carreira.
O relator do caso foi o ministro Carlos Velloso. Em 31 de agosto de 2004, ele decidiu que o processo de nomeação atendeu aos requisitos da lei – e negou seguimento ao mandado de segurança de Pizzolatti. Este acabou entrando numa próxima vaga – e ambos são desembargadores do TRF-4. Não quiseram se manifestar sobre o episódio do passado – e se deixou ou não arestas que ainda incomodam.
EXPERIÊNCIA – Paulsen, o presidente da 8ª Turma, 47 anos, acumulou larga experiência ao trabalhar no Supremo Tribunal Federal em duas temporadas, como juiz auxiliar da ministra Ellen Gracie, em 2007 e em 2009/2011. Está no TRF-4 desde dezembro de 2013 – nomeado pela presidente Dilma Rousseff. É o único dos três integrantes da 8ª Turma que tem o currículo completo disponível online. Está lá, por exemplo, a citação de seu último livro, “Crimes federais”, lançado no ano passado, e de outros quatro, sobre questões tributárias, sua especialidade. É doutor em direitos e garantias do contribuinte pela Universidade de Salamanca, Espanha.
Crimes federais, com suas 451 páginas, aborda 60 crimes mais recorrentes nas varas criminais da Justiça Federal. “A leitura e o estudo da obra são recomendadíssimos”, escreveu, no prefácio, o procurador da República Douglas Fischer, um dos mais importantes assessores do ex-procurador-geral Rodrigo Janot no auge da Operação Lava Jato.
AGRADECIMENTO -Paulsen agradece, no livro, a parceria e o coleguismo de “dois grandes magistrados” – Santos Laus e Gebran Neto – “que tiveram a paciência de compor, com um tributarista, a Turma penal”. “Foram e são meus professores nessa matéria. Agiram com tolerância para com os meus equívocos técnicos, me ajudaram a compreender os institutos peculiares a tal ramo do Direito e o papel da jurisdição criminal.”
Falsa modéstia, talvez, se for levado em conta que saiu do tributarista, em julgamento de 27 de junho do ano passado, o voto pela absolvição de João Vaccari Neto, ex-tesoureiro do PT, em um dos processos da Lava Jato. Condenado neste processo a 15 anos e 4 meses pelo juiz da primeira instância, Sérgio Moro, Vaccari recorreu à 8.ª Turma. No dia 27, Gebran Neto, o relator, confirmou a sentença. Paulsen divergiu, e votou pela absolvição. Depois de pedir vista, Santos Laus o acompanhou. Foi a primeira reforma significativa de uma decisão de Sérgio Moro contra o núcleo petista da Lava Jato – novamente de volta ao palco quando se aproxima o julgamento da apelação de Lula.
SÓ DELAÇÃO? -Paulsen defendeu, no voto, que “o mero depoimento de réus colaboradores são insuficientes para sustentar o que ora se afirma, porquanto nos termos do artigo 4.º, parágrafo 16 de Lei 12.850/13, nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações do agente colaborador”. Entendeu, então, que as acusações naquele processo contra Vaccari esbarravam “na absoluta ausência de prova de corroboração”. Laus o acompanhou, “absolvendo o réu diante da ausência de prova suficiente do dolo delitivo do acusado”.
Paira no ar, observadas as entrelinhas, que a Turma tem uma característica singular: calhou que um de seus três integrantes, Gebran Neto, seja um velho amigo de relações pessoais e jurídicas do juiz da primeira instância, Sérgio Moro. Todas as alegações de suspeição foram derrubadas – na 8ª Turma e em instâncias superiores. Todos se referem a Moro como “o magistrado do primeiro grau”, ou expressões semelhantes.
ACIMA DE DÚVIDA – Durante a sessão, Laus, o decano da Turma, e diretor da Escola de Magistratura do TRF-4, foi o mais impassível. Manteve o tempo todo a posição vertical, só virou lateralmente para agradecer à servente que trazia chá e café, e não fez caras e bocas, a não ser, às vezes, um indecifrável ar de jogador de pôquer. Em dado momento, ouviu Gebran usar a expressão “prova acima de qualquer dúvida razoável”, sobre o caso em tela, e logo acrescentar, numa rara fresta do que rola nos bastidores, “Laus não gosta que use o critério de prova acima de qualquer dúvida razoável”.
O decano não disse nada, nem com os olhos, o que já é dizer muito. Ambos sabem, e Paulsen também, que o conceito é central nas discussões – e faz contraponto com um outro, este consagrado na Constituição, que é o da presunção da inocência.
ERRO TÉCNICO – No intervalo da sessão, Laus saiu de toga. Gebran e Paulsen, de terno. Voltaram meia hora depois, já chegando o fim da tarde. No último caso da extensa pauta, Laus fica intrigado com um suposto erro técnico do Ministério Público não observado por Sérgio Moro.
“Posso admitir um crime antecedente ocorrido após o fato”? – perguntou-se o desembargador. E pediu vista. O relator, Gebran, discordou, e argumentou pela manutenção da sentença. “Sou meio lento para chegar à conclusão”, respondeu Laus, reafirmando o pedido de vista, de resto soberano. Ainda diria, sorrindo, enigmaticamente, quase ao fim da sessão: “Estou evoluindo, desembargador Gebran. A gente evolui de vez em quando”.
19 de janeiro de 2018
Luiz Maklouf Carvalho
Estadão
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