ARTIGOS - EDUCAÇÃO
Na foto acima, o teatro está dentro da sala e a realidade, fora.
Há sempre o elemento teatral em qualquer profissão. De certo modo, isso é inevitável em algum grau, pois todas as pessoas se preocupam minimamente com a sua imagem exterior (por exemplo, você vai trabalhar com alguma roupa, correto?[1]). Pretendo listar aqui alguns aspectos teatrais evitáveis, no seio do meio acadêmico brasileiro, os quais oferecem um importante risco potencial para a diminuição da inteligência. O presente ensaio informal destina-se a trazer um relato ao público geral de alguns traços interessantes e surpreendentes do dia-a-dia dos cientistas brasileiros, especialmente na área de exatas.[2] Não menos importantes, fazem também parte do público-alvo os estudantes e profissionais da ciência.
Sempre responder às perguntas durante exposição oral
Seja numa defesa de dissertação ou numa palestra, quem no meio acadêmico-científico não conhece bem esse mandamento sagrado? Não se pode deixar o ouvinte sem resposta. Me arrisco a dizer que, pelo menos na área de física e matemática, todos os profissionais e estudantes de pós-graduação já ouviram dizer que “é proibido responder ‘não sei’”. Não se trata de algo difuso – essa recomendação é feita explicitamente com todas as letras.
É assim que nós aprendemos; é assim que a banda toca. Esse padrão de comportamento, imposto desde cedo, não passa de um teatro, em que o ator recorre ao improviso a fim de passar uma imagem falsa. O procedimento é gravíssimo, pois se baseia no engano de terceiros (além, muitas vezes, do auto-engano) para sustentar uma mera imagem. É um desvio moral da mais alta relevância, uma vez que essa atitude está em conformidade com a preferência pela opinião dos outros em detrimento da busca pela verdade.
Ora, sendo a inteligência a capacidade de apreensão da verdade[3], optar pela preocupação com a opinião dos outros é mais do que burrice: é jogar a inteligência no lixo, abandonando-a ao desuso. Em maior ou menor grau, é essa a consequência natural do teatro que fabrica a imagem do sujeito que sabe tudo.
Não deixem de comparecer à palestra do Dr. ..., que veio da Alemanha!
Quantas vezes os chefes de departamento não chamam a atenção dos seus subordinados? “A palestra estava vazia”. Quantas vezes um pesquisador, ou coordenador, já pediu para os estudantes darem uma força ao departamento, comparecendo a um seminário sobre “teoria-mãe octônica supersimétrica em 11 dimensões”?
Novamente, aí encontramos o teatro. Diferentemente do caso anterior, o teatro não constrói (somente) a imagem do próprio ator, mas a imagem de uma outra pessoa. Não há script; basta aparecer e sentar na platéia, e, assim, o falso interesse no tema do palestrante estará forjado. As motivações para essa cena podem variar bastante, mas sempre é possível encontrar algum elemento de lisonja, de bajulação (geralmente com interesses políticos e/ou financeiros). O objetivo é fazer o palestrante crer que a maior parte dos professores e estudantes alimenta interesse pelo seu objeto de estudo. Ou, no mínimo, que eles são praticantes disciplinados dessa cultura do fingimento.
Essa cultura do fingimento, além de sacrificar um tempo precioso, favorece uma atmosfera hostil à inteligência, em que os interesses cognitivos individuais são continuamente substituídos pelos interesses institucionais, ditados por autoridades externas. Se esse processo teatral for realizado sem um dedicado exame de consciência, o sujeito vai realmente passar a acreditar que os interesses institucionais são seus próprios interesses.
A explosão cênica e o ápice dramático: defesas de dissertações e teses
O ritual de uma defesa de doutorado é tão rico, que me abstenho de analisá-lo com a profundidade adequada. No entanto, me atrevo a dizer que ele deve ter muitas coisas em comum com rituais iniciáticos esotéricos. Por exemplo, através desse ritual, o candidato recebe o título de doutor, entrando num clubinho de pessoas iluminadas que trocam entre si conhecimentos numa linguagem secreta. Com efeito, a sociedade trata essas pessoas como se fossem autoridades em tudo; em parte porque elas se comunicam numa linguagem (matemática) inacessível, sobre realidades supostamente fundamentais e superiores.[4]
Não só o candidato ao título deve fazer a sua parte: os membros da banca examinadora, muitas vezes, também se preocupam com as aparências perante a platéia. De acordo com o roteiro cênico, o candidato é avaliado depois das perguntas, podendo ou não ser reprovado. Mas a realidade é outra: ele já está aprovado de antemão. Para evitar o trauma de uma possível reprovação inesperada, essa aprovação automática acabou virando tradição. A data de defesa só é marcada quando se tem a certeza de que o candidato está apto a receber o título.
Com relação a esse aspecto teatral específico, é bom ressaltar que não o considero uma falha moral com alguma consequência importante à depressão da inteligência: escrevo aqui mais como uma curiosa e interessante discrepância que salta aos olhos entre o que é encenado e a realidade dos fatos. Pude captar esse descompasso na foto acima, tirada nas dependências de uma certa universidade federal: dentro da sala, encontramos o ritual segundo o qual o candidato pode ou não ser aprovado. Fora da sala, vemos o seu desmentido. Se os presentes tivessem alguma dúvida sobre a aprovação do candidato, a mesa para comemoração não estaria lá, não é mesmo?
Além desses elementos, há muitos outros elementos de fingimento, ritual e teatro além desses poucos que abordei; uns graves, e outros apenas curiosos. Estão em todo lugar, nas salas de aula, nos corredores, nas salas de café, nas reuniões de departamento (aarghh!) e até no curriculum vitae.[5] É bem provável que boa parte desses mecanismos automáticos de encenação seja inevitável exatamente pelo caráter utilitarista da ciência, que é um instrumento de algum poder estatal ou global. Por exemplo, imagine que você é um dos chefões da equipe que realizou a detecção das ondas gravitacionais. Então vem um repórter com uma câmera de TV e lhe pergunta qual é o significado desse experimento. Levando em conta que o experimento consumiu bilhões de dólares, a sua maior preocupação será dizer a ele exatamente o que você acha?
Notas:
[1] Até o “cientista maluco”, que parece não ligar a mínima para sua roupa, se esforça em ter sua imagem associada àquele gênio desapegado das coisas materiais. Ora, se ele realmente não ligasse para esses detalhes, estes mesmos não seriam objeto de atitude deliberada: quem não liga para a roupa, não se veste como um retardado durante todo o tempo.
[2] Na área de humanas, não tenho a experiência requerida para um relato fiel. Entretanto, minha impressão é de que, na falta de um certo contraponto que seria fornecido pelo elemento matemático-técnico, a cultura do fingimento aí se transformou num câncer em estágio final.
[3] Aqui, tomo emprestada a definição de inteligência dada pelo filósofo Olavo de Carvalho (vejahttp://www.olavodecarvalho.org/apostilas/intver.htm).
[4] O fascínio que alimenta esse mito é comprovado pela necessidade irresistível em apelar à linguagem físico-matemática por parte de muitos intelectuais de ciências humanas, apenas para dar uma “legitimidade” às suas pesquisas. Esse fenômeno foi descrito por Sokal e Bricmont, em Imposturas Intelectuais, Record: Rio de Janeiro, 1999.
[5] Quer um exemplo? Cada projeto de pesquisa que você coloca no curriculum ganha uma pontuação em concursos e similares. Ora, como é possível haver mérito numa promessa de ações a serem feitas no futuro? Há também um teatro medonho segundo o qual escrever artigos sobre educação constitui em si um mérito no campo da educação. Ora, esse mérito existe quando há o trabalho concreto de educação, assim como o bom engenheiro de pontes é aquele que faz boas pontes; nunca o que apenas ensina a fazer pontes numa sala de aula.
28 de junho de 2016
Guilherme de Berredo Peixoto é professor associado do Departamento de Física da Universidade Federal de Juiz de Fora.
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