É evidente que a decisão da 1ª Turma do STF de aceitar denúncia contra o Deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ) e transformá-lo em réu por suposto crime de “incitação ao estupro” foi uma decisão casuística, dissonante de toda a jurisprudência da Corte e voltada pessoalmente contra o Deputado. Houve um ânimo claro de feri-lo especificamente, de desferir um golpe contra Bolsonaro.
Não é preciso muito esforço para concluir a respeito, mesmo sob ótica estritamente jurídica.
A notícia veiculada no site do STF afirma o seguinte:
O relator, ministro Luiz Fux, entendeu que as declarações do deputado Bolsonaro não têm relação com o exercício do mandato. “O conteúdo não guarda qualquer relação com a função de deputado, portanto não incide a imunidade prevista na Constituição Federal”, disse. Ele acrescentou que, apesar de o Supremo ter entendimento sobre a impossibilidade de responsabilização do parlamentar quanto às palavras proferidas na Câmara dos Deputados, as declarações foram veiculadas também em veículo de imprensa, não incidindo, assim, a imunidade. Observou, ainda, que não importa o fato de o parlamentar estar no gabinete durante a entrevista, uma vez que as declarações se tornaram públicas.
Por que afirmo que não é necessário qualquer esforço para perceber nisto uma decisão casuística e direcionada?
Pelo fato de que, no dia imediatamente anterior (20/06), o STF decidiu um outro processo, uma queixa do Senador Aécio Neves (PSDB-MG) contra a Deputada Jandira Feghali (PcdoB-RJ) e o resultado foi exatamente o oposto. Jandira insinuou em seu Twitter que Aécio era responsável por um helicóptero repleto de drogas que fora apreendido em Afonso Cláudio (ES), em 2013. Em 19 de maio de 2015, ela escreveu: “Aécio, o Brasil precisa saber de um helicóptero repleto de drogas”.
Vejam como o STF decidiu sobre Jandira Feghali, um dia antes de decidir sobre Bolsonaro:
O relator lembrou que a atividade parlamentar não se restringe ao âmbito físico do Congresso Nacional, e que a prática de atos em função do mandato, ainda que fora das Casas Legislativas, está igualmente protegida pela garantia prevista no artigo 53, caput, da Constituição Federal. Ele destacou que o instituto da imunidade parlamentar deve ser interpretado em consonância com a exigência de preservação da independência do congressista. No caso, observou que o comportamento da deputada Jandira mostrou estreita conexão com o desempenho do mandato legislativo.
Em sua decisão, o ministro registrou que o exercício do mandato legitima a invocação dessa prerrogativa jurídica, “destinada a proteger opiniões, palavras e votos do membro do Poder Legislativo, independentemente do lugar em que proferidas as expressões eventualmente ofensivas”. […]
O ministro Celso de Mello destacou, também, que a garantia constitucional protege as entrevistas jornalísticas; a transmissão, para a imprensa, do conteúdo de pronunciamentos ou de relatórios produzidos nas Casas Legislativas; bem assim as declarações veiculadas por intermédio de mass media (meios de comunicação de massa) ou social media (mídias sociais). Isso porque o Supremo tem reafirmado a importância do debate, pela mídia, das questões políticas protagonizadas pelos detentores de mandato, “além de haver corretamente enfatizado a ideia de que as declarações à imprensa constituem o prolongamento natural do exercício das funções parlamentares, desde que se relacionem com estas”.
No caso de Jandira, o parecer da Procuradoria-Geral da República foi pelo arquivamento do caso, com base na imunidade parlamentar. Para Bolsonaro, entretanto, foi a própria PGR que ingressou com a denúncia.
O mesmo STF que absolve Jandira Feghali, que é do PC do B, por insinuar que Aécio Neves teria relação com tráfico de drogas, é o STF que recebe denúncia contra Jair Bolsonaro afirmando que suas palavras não estão protegidas pela imunidade parlamentar.
Ressalto novamente: existem menos de 24 horas entre as duas decisões. A decisão que absolveu Jandira foi tomada no dia anterior àquela que recebeu denúncia contra Jair Bolsonaro – e os motivos são exatamente os mesmos, só que com sinais invertidos.
Por que os dois pesos e duas medidas do STF?
Porque a decisão é casuística, como disse, e voltada pessoalmente contra Bolsonaro.
CONTRA BOLSONARO, CONTRA A VERDADE DOS FATOS
Há outra razão jurídica para concluirmos facilmente sobre isto.
É que o princípio mais fundamental do Processo Penal é o “princípio da verdade real”, que diz o seguinte: deve ser buscada a verdade dos fatos, aquilo que realmente ocorreu, e não apenas o que parece ter ocorrido; a função punitiva do Estado só deve se voltar contra aquele que realmente cometeu um crime, não contra aquele que parece ter cometido.
Agora, perceba-se o contrassenso: é minimamente razoável que um Deputado conhecido por ser autor de projetos de lei que agravam as penas para estupradores, que propõe até mesmo a castração química do condenado por estupro como condição para progressão do regime, um parlamentar famoso por discursos acalorados contra violadores, contra a impunidade, contra o tratamento manso que se dá aos criminosos – é minimamente razoável que este parlamentar, justo este, tenha resolvido, de repente, incitar o estupro contra alguém?
É minimamente razoável admitir que um Deputado que discutiu com a Sra. Maria do Rosário exatamente porque ela – ela, sim! – estava defendendo um estuprador, o Champinha, enquanto ele condenava veementemente o crime cometido (um fato público, notório, gravado em vídeo e amplamente difundido), tenha, agora, cometido apologia de estupro contra a parlamentar que queria justamente tratamento manso para o estuprador?
A coisa inteira é de um descalabro colossal. Não está de acordo com o princípio da verdade real admitir que Bolsonaro – justo ele! – tenha pretendido incitar o crime de estupro, quando é o principal defensor do endurecimento contra esse crime hoje, em todo o Parlamento – inclusive infinitas vezes mais incisivo contra isso do que a Sra. Maria do Rosário, conhecida por defender os “direitos humanos” dos criminosos, entre os quais o estuprador Champinha, que torturou e estuprou a jovem Liana Bei Friedenbach, reiteradas vezes e por vários dias seguidos, ele e seus comparsas, até assassiná-la com um facão cego, por degola e esfaqueamentos sucessivos.
E justamente a querela originada, deste caso, entre os Deputados Jair Bolsonaro e Maria do Rosário, o primeiro condenando Champinha e a segunda, defendendo-lhe, leva a que o STF receba denúncia contra o primeiro por – pasmem! – apologia do estupro!
É o fim do processo penal e a instauração acachapante do casuísmo como técnica de decisão.
SUPREMO PODER, PODER SUPREMO
Há tempos o STF vem agindo assim. Em sua época recente, o Supremo vem se considerando realmente supremo. Quem poderá questioná-lo? Onde? A quem recorrer?
Na falta de um nome melhor, chamo de “síndrome do ídolo constitucional”: já não vige na Suprema Corte a noção de que ela guarda a Constituição. Ao contrário, o Supremo Tribunal acredita que ele próprio é a Constituição, aGründnorm de Kelsen realizada, isto é, o fundamento último de todo o ordenamento jurídico, pelo qual todas as outras leis e a própria Constituição devem ser obedecidas. A nação, aparenta, não existirá sem o seu poder supremo de tutela a definir, inclusive contra a mesma Constituição, como a realidade jurídica deve ser – numa negação absoluta da realidade fática. O Supremo se fez um ídolo no altar de seu próprio culto e, dos altos píncaros de seu templo, regerá a vida dos homens todos, dos Poderes outros, com mão de ferro, segundo seus desejos, seu arbítrio, seus fetiches.
O grande problema da forma como o Poder Judiciário está instalado no Brasil é que o Supremo, de fato, concentra uma carga altíssima de poder: ele é o Tribunal Constitucional, mas também é a última instância dos demais processos ordinários e, ainda, a primeira instância dos detentores de foro privilegiado. Há uma mistura de competências que não é benéfica e que, como estamos percebendo, invade ferrenha as cabeças dos magistrados. Do Supremo não há a quem recorrer – e eles sabem disso.
Na Espanha existe um sistema de “freios e contrapesos” dentro do próprio Judiciário. Em suma: há como recorrer do Tribunal Supremo e, de outro lado, o Tribunal Constitucional não é a última palavra em todas as questões.
Indo mais além, os espanhóis implementaram outra medida: para evitar concentração de poder no Tribunal Constitucional, seus juízes têm mandato de 9 anos e as designações são distribuídas por vários órgãos – as duas Casas do Congresso, o Governo executivo e o Consejo General del Poder Judicial, do próprio Judiciário. Não há designação exclusiva, como ocorre no Brasil, com nomeação de Ministros apenas pelo Presidente da República.
Já está mais do que na hora de algo assim ser pensado para o nosso país, sob pena de convivermos com um Tribunal Supremo que exercerá, em direito – porque ele diz o que é o direito, afinal – e em verdade, um poder supremo. Os sinais de arbitrariedade do STF já têm sido muitos para serem simplesmente ignorados. Infelizmente, com um Congresso quase que inteiramente sujeito a se tornar réu no mesmo STF (e, agora, até por crime impossível), é difícil que alguma proposta razoável neste sentido caminhe, por ora.
O PODER QUE MANDA PENSAR
Mas voltemos a Bolsonaro.
Dois últimos pontos precisam ser ditos.
Em primeiro lugar, à luz da própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e da diferença de tratamento que foi dada a Bolsonaro e a Jandira Feghali, fica evidente que o casuísmo adotado contra o parlamentar do PSC é uma tentativa de igualá-lo aos demais réus do Congresso. Bolsonaro é o único Deputado que, segundo Joaquim Barbosa, não recebeu propina do Mensalão e, nas delações da Lava Jato, é o único parlamentar de seu antigo Partido citado como avesso ao que se praticava no Petrolão.
Da impossibilidade de fazer Bolsonaro réu de crimes que a quase generalidade do Parlamento cometeu, o Supremo foi mais adiante: transformou Bolsonaro em réu de um crime que ele próprio repugna e combate na vida pessoal e no exercício do mandato parlamentar. O que fica claro, portanto, é uma ânsia por, simplesmente, colar na testa do parlamentar a palavra “réu”, ainda que o motivo seja o mais esdrúxulo e desamparado de realismo possível.
O fenômeno Jair Bolsonaro é algo que a mídia brasileira e o establishmentainda não compreenderam: pela primeira vez o povo sente um político falar por eles. O STF, que também não está compreendendo isso direito, resolveu mexer nesse vespeiro.
Numa situação dessas, a ação do estamento burocrático sempre será a de absorver o elemento dissonante e fazê-lo parte de si, engrenagem do esquema. Como, ao que parece, isto não foi possível com Bolsonaro, o passo seguinte será o de aniquilar o elemento dissonante e, então, suprimir a voz popular que ecoa pela fresta que ele abriu nos muros do estamento burocrático.
Raymundo Faoro afirma:
Realidade diferente, que com o escol dirigente não se confunde, é o estamento burocrático. Não é este uma camada móvel, que se renova e morre, com as variações sociais. Possui estrutura própria que, embora condicionada pelas forças sociais e econômicas, eleva-se acima da nação, a qual, pobre de recursos, não logra dominá-lo e aniquilá-lo. O ideal das classes que integram a nação é absorver o estamento burocrático, apropriando-o, nacionalizando-o, para diluí-lo na elite. Aquele é uma estratificação aristocrática, com privilégios e posição definida pelo Estado, acima da nação. […]
O estamento burocrático é árbitro da nação, das suas classes, regulando materialmente a economia, funcionando como proprietário da soberania. As demais estratificações sociais, classes ou estamentos, são por ele condicionadas, carecendo de valor simbólico próprio. Aquelas não logram organizar-se impulsionadas pela necessidade telúrica, existem como “simples imitação e prática administrativas”. Um sopro as deslocará, transformando-as em pó, sem que resistam a seu império. (Os Donos do Poder, Rio de Janeiro: Globo, 1956; pp. 261-262).
Fazer de Jair Bolsonaro réu por um crime que ele próprio combate é o sopro que visa transformá-lo em pó mas, também, aniquilar a única possibilidade política, em muitos anos, que se colocou fora do establishment e ao lado do povo – é uma luta pela manutenção da soberania no estamento burocrático, travada agora mesmo, neste instante. O povo não pode ter a soberania em suas mãos, sob pena de o estamento não sobreviver.
Acredito que o Supremo se colocou agora, como nunca antes, em posição frontal contra o povo. A população percebe com clareza a relutância e o zelo do STF por personagens como Lula e Dilma ou por Jandira Feghali, que teve sua imunidade parlamentar garantida, enquanto que, para Bolsonaro, a Corte dispensa um tratamento diferenciado, sob medida, fazendo-lhe réu por uma decisão juridicamente absurda e sem amparo na realidade fática do próprio mandato do parlamentar.
Somente a reverberação da realidade de uma forma acachapante, inolvidável e demolidora será capaz de criar o clima que desmonte o mundo paralelo criado por este processo, que derrube o seu castelo de areia e, então, permita uma vitória também nas vias judiciais – caso contrário, sem a pressão da realidade e do povo, o processo seguirá seu curso normal rumo à aniquilação do elemento dissonante, como é o seu único objetivo.
O Deputado Jair Bolsonaro também precisa estar ciente de tudo isso, caso contrário, não responderá da maneira que a situação exige e que o povo precisa, correndo o risco de ser, como todos os outros, absorvido pelo próprio estamento burocrático no momento mesmo em que é por ele aniquilado – e, então, perderá toda a legitimidade que um dia conquistara. É uma via de mão dupla entre o povo e a persona política que o representa.
Esta não é uma luta por um nome, mas contra o estamento burocrático que se apropria do poder e não permite o seu exercício pelo povo. Na situação concreta, contudo, a pessoa tornou-se um símbolo desta luta – e todos precisamos estar bem cônscios disto, especialmente o parlamentar motivo deste texto.
23 de junho de 2016
senso incomum
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