"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

domingo, 22 de maio de 2016

SONIA SAGHETTO: FEIRA, BOTECO, BORDEL

Aos poucos consolidou-se a ideia de que, para se aproximar do povo, nossos representantes têm que adotar uma fala chula, rasteira

Não sei bem quando a política brasileira começou a se confundir com feira livre, boteco e bordel. Talvez na chegada de Cabral, quando escambo, compadrio, clientelismo e a frouxidão dos costumes desembarcaram, junto com os europeus, nas grandes praias da costa brasileira. Mas deixo aos historiadores e cientistas sociais a parte de explicar a gênese e evolução desse non-sense que hoje domina em grande parte a cena política nacional. Concentro-me por ora nos impressionantes artistas do Gran Circus Brasil.

Em um momento tão grave da história da República, os brasileiros assistem ao que ocorre na Praça dos Três Poderes com um sentimento que alterna descrença, desalento e vergonha. Não, não culparei apenas os políticos, que para lá foram conduzidos pelo voto livre e democrático. Responsabilizarei também por esse estado de coisas a proverbial opção pela chicana, pelo candidato histriônico e pelo discurso grosseiro.

Trouxemos para a vida real Odorico Paraguaçu, o personagem de Dias Gomes que encarnou o estereótipo do político corrupto que se vale do verbo torto para convencer os eleitores de que pode fazer chover no sertão, abrir caminho entre os sete mares e reinventar o paraíso. Populista e falastrão, Odorico parece ter sido um modelo levado a sério pela classe política.

Aos poucos consolidou-se a ideia de que, para se aproximar do povo, nossos representantes têm que adotar uma fala chula, rasteira, que eles acreditam reverberar melhor na alma popular. Por alguma razão que me escapa, nossos líderes entenderam que essa aproximação não se daria pela via da sensibilidade acerca das questões sociais, da eficiência administrativa, das atitudes comedidas, da responsabilidade perante as contas públicas, da postura equilibrada e de discursos onde a razoabilidade prevaleceria sobre a oratória vã.


Em 1990, Fernando Collor trombeteou aos eleitores: “Tenho aquilo roxo”. Referia-se à cor dos próprios genitais que, segundo a crença tradicional por ele evocada, seria sinônimo de homem corajoso. A frase tornou-se moda. Muita gente repetiu, os tolos riram ainda uma vez. Mais uma barreira vencida. A essa época, já tínhamos representantes que adotavam o estilo feira livre: berros ensurdecedores para vender seu peixe. E, claro, balcões onde se negociava de tudo, inclusive consciências.

Nos primeiros anos de seu governo, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva – que antes de adotar a configuração “paz e amor” era dono de um discurso extremado – descobriu as maravilhas da mansuetude e da autolouvação. Nunca antes na história deste país tornou-se um clássico à moda Goebbels. A eloquência mesmerizava as multidões a ponto de convencer a quase todos sobre as grandes virtudes de administradora de sua desconhecida auxiliar, guindada à condição de sucessora do trono. Consolidava-se a conversa de boteco, aquela superficial, em que, embalado por duas ou três cervejas, o sujeito converte-se em técnico de futebol renomado, cientista laureado ou historiador nato. Sob tais condições etílicas, acredita-se em muita lorota e derrama-se muita balela nos ouvidos alheios. Sem compromisso algum com a verdade.

A pièce de résistance que nutria o ódio entre os brasileiros na era Lula ganhou ainda mais espaço no primeiro reinado de Dilma Rousseff. A retórica oficial apostava em outro clássico da conversa de boteco: as generalizações. As elites brancas, de olhos azuis e opressoras tornaram-se objeto de ódio. Os slogans separatistas multiplicaram-se: agora, a Casa Grande do século 21 surta quando a senzala aprende a ler; meritocracia tornou-se palavrão e privatização é igual a sexo na era vitoriana: pratica-se a rodo no escurinho das alcovas, mas não se admite o ato nem sob tortura.

Há dois meses, Lula inaugurou uma nova fase no repertório do discurso político nacional: comparou-se a uma jararaca. Aristóteles, Demóstenes e Cícero – se vivos fossem – teriam meneado as clássicas cabeças. Quem, em sã consciência, se compara a uma serpente, associada a traição, veneno e morte? Imagine Barack Obama ou David Cameron proferindo algo semelhante! Aliás, imagine Obama ou Cameron bradando aos quatro ventos qual a cor de seus genitais! Atitude igual, lamento dizer, só na selva mesmo, com as feras disputando território à base de urina nos arbustos. Nem Putin, senhores, ousaria tanto. E ele é russo!

Se hoje boa parte de nossos políticos acha naturalíssimo expor a própria intimidade, igualmente não se peja de continuar a receber salários e benesses enquanto enfrenta processos e investigações. Flagrados em escândalos, acreditam-se donos dos cargos que ocupam e dali não se afastam, a não ser que sejam expurgados. Também não se constrangem em mentir: repetem com absoluta convicção teorias esdrúxulas e versões que não resistem a simples análises. E a todos nos deixam com a impressão que uma certa dose de psicopatia é necessária para alcançar os postos mais elevados da Nação.

Por muito menos do que vemos hoje no Brasil, renunciariam os homens públicos de outros países onde ainda sobrevive um certo pudor. A prostituição da política há muito já deixou de ser motivo de vergonha em nosso país – lamentavelmente.

Agora, quase não se vê vestígios de qualquer respeito aos cargos e funções públicos. Foi-se a solenidade do cargo e o comedimento do gesto. O varal de cartazes colados esta semana nos vidros do Palácio do Planalto é mais uma prova de que as instituições foram convertidas em meros “puxadinhos”. É a mais recente demonstração da confusão que se estabeleceu entre Estado e governo. Recuamos trezentos anos e caímos no absolutismo ególatra de Luís XIV: “L‘État c’est moi” (O Estado sou eu).

Aceitemos: somos co-autores dessa piada macabra que nos vitima. Felizmente, estamos deixando de rir como crianças tolas. Hora de dizer não aos discursos toscos e atitudes galhofeiras. Hora de varrer os slogans ocos e a crescente espetacularização da política, cujo ápice foram as excelências estourando bombas de confete no plenário da Câmara em plena votação do impeachment.

Não, senhores, apesar de seus esforços em nos infantilizar, uma grande parte da população reconhece a superioridade da elegância e da ética – e as prefere em seus representantes, embora, obviamente, muitos desavisados ainda se riam das baixezas. Alguns por mera identificação; outros porque acham no mínimo curioso que um homem público, ocupante de altas funções, desça ao nível dos bufões.

E há os que, justamente por se reconhecerem anões morais, deleitam-se com as bravatas e traquinagens dos governantes. A estes interessa assistir ao circo político como quem assiste a um episódio do Big Brother, comprazendo-se com a miséria das atitudes e com as pequenezas dos poderosos. “São todos iguais a mim”, dizem a si mesmos, contentes que a tacanharia seja coletiva. Traduzem aquele gozo miúdo dos que, incapazes de se erguer, debulham-se de alegria perante a queda alheia.

Estes passarão, assim como a era das mediocridades na política nacional.


22 de maio de 2016
in Augusto Nunes, Veja

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