Desde começos do ano apareceu na cena política espanhola uma alternativa, um novo ator coletivo, o partido Podemos.
Lançado em 16 de janeiro, num teatro de Madri, formado por educadores, professores e artistas, alguns com presença na mídia nacional, quase todos entre 30 e 40 anos, instituiu-se numa assembleia aberta, convocada pela internet, com o objetivo de disputar as eleições europeias, previstas para maio.
Os resultados surpreenderam os mais otimistas: numa campanha barata, com grande participação de militantes anônimos, sem contar com doações de empresas e sem prestar “consultorias” rentáveis, o Podemos registrou quase 8% dos votos, elegendo cinco deputados para o Parlamento Europeu, virando a quarta força política do país. Em algumas cidades e regiões, ultrapassou o patamar de 10% dos votos, tomando o terceiro lugar.
O programa político apresentado pelos candidatos do Podemos tentou captar e canalizar demandas fortes na sociedade espanhola, desde que explodiu a crise econômica de 2008: revigoramento dos sistemas públicos de saúde e de educação; políticas de reindustrialização; incentivos à construção civil para as pessoas de baixa renda; reajustes salariais, revertendo a curva declinante das remunerações dos trabalhadores.
A preocupação em defender a sociedade exprimiu-se na fórmula: “Toda a riqueza do país, nas suas diferentes formas, e seja qual for a sua titularidade, está subordinada ao interesse geral.” Trata-se, a rigor, de um princípio inserido na Constituição espanhola e foi curioso observar como um princípio constitucional podia transformar-se numa proposta com ares de subversiva. Ou subversivos estariam sendo os governantes, mais preocupados em cuidar dos bancos e das grandes empresas do que do bem-estar e da felicidade das pessoas?
Havia, em outros aspectos, ousadas ideias: impedir restrições à lei sobre a interrupção voluntária da gravidez; retirar a Espanha da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan); revogar a Lei sobre os Estrangeiros; respeitar a liberdade da Catalunha — ou outras regiões do país — de decidir o próprio destino.
O sucesso tornou populares os líderes e as propostas do Podemos. Entre maio e julho, o partido multiplicou por seis seus apoios nas redes sociais, de cem mil para 600 mil. Neste último mês, pesquisas do Centro de Pesquisas Sociológicas (CIS) apontavam o Podemos como segunda força política, superando o tradicional representante da social democracia, o Partido Socialista Espanhol (PSOE), e a apenas um ponto do Partido Popular (PP), de direita, que preside o atual governo.
As inscrições abertas pela internet explodiram, passando, em três meses, de julho a outubro, de 32 mil para mais de 200 mil filiados. Ao mesmo tempo, entrevistas de lideranças do Podemos em programas de televisão registravam recordes de audiência.
Outras pesquisas, publicadas no início de novembro, situaram o novo partido como principal força política eleitoral, à frente do PP e do PSOE. Entretanto, considerando-se as próximas eleições gerais, de novembro do próximo ano, observaram-se ainda oscilações, mas por diferenças mínimas, entre os principais partidos.
Em virtude da importância política adquirida, o Podemos transformou-se rapidamente em alvo de restrições, agravos e denúncias.
Os mais indulgentes chamam seus líderes de “ingênuos”, e suas propostas, de “irrealistas.” Num registro mais severo, são acusados de “irresponsáveis” e de “populistas”, destacando-se a “perigosa” aproximação com a experiência em curso na Venezuela e na Bolívia, e as “inaceitáveis” evocações de V. Lênin nas intervenções de Pablo Iglesias Turrión, um dos recém-eleitos eurodeputados e principal liderança política e midiática do partido.
O Podemos experimenta um momento de euforia, comum em experiências inovadoras, que surgem com alto índice de entusiasmo. Com uma organização democrática, embora sujeita a questionamentos, acionando as redes sociais e se beneficiando de seu potencial “horizontalizador”, terá pela frente desafios que já fizeram naufragar aventuras semelhantes: combinar demandas sociais com o jogo político-partidário institucional. As disputas eleitorais com a mudança social.
As repetidas manifestações de rua (os “indignados”), mesmo muito amplas, mas sem participação no jogo institucional, propondo o voto nulo ou a abstenção, contribuíram, involuntariamente, para ascenso da direita ao poder político. Já a concentração exclusiva nas disputas institucionais — o cretinismo parlamentar — levou ao abandono da perspectiva de mudança. Foi o caso do PSOE, que se tornou um mero gestor da crise sistêmica do capitalismo em detrimento dos interesses das maiorias.
Trata-se de “converter a indignação social em mudança política”. O Podemos terá êxito? “Claro que sí, podemos”, responde Iglesias. Coragem e esperança, um belo presente de Natal para os espanhóis.
01 de janeiro de 2015
Daniel Aarão Reis é professor de História Contemporânea da UFF - daniel.aaraoreis@gmail.com. Originalmente publicado em O Globo em 30 de dezembro de 2014.
Nenhum comentário:
Postar um comentário