Tramita no Congresso uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), a PEC 320, que cria na Câmara dos Deputados quatro cadeiras exclusivas para "representantes indígenas". A iniciativa tem o mesmo espírito daquele famigerado decreto presidencial que pretende alterar a ordem constitucional criando "conselhos" para "consolidar a participação social como método de governo". Em ambos os casos, a intenção declarada é "aperfeiçoar a democracia", mas o resultado é o exato oposto: fazer a democracia representativa dar lugar à representação corporativa, pilar dos regimes autoritários de inspiração fascista.
É possível que o Congresso - se estiver realmente interessado em se preservar - destine tais iniciativas, e outras similares que eventualmente apareçam, ao escaninho do esquecimento. Mas o fato é que elas sinalizam a consolidação de um pensamento autoritário que o lulopetismo pretende entranhar nas instituições políticas brasileiras.
A PEC 320 tem vários autores, liderados pelo deputado petista Nilmário Miranda (MG), e tramita desde outubro do ano passado. Ela modifica o artigo 45 da Constituição, que versa sobre a composição da Câmara dos Deputados. O texto original estabelece que a Câmara será formada por "representantes do povo, eleitos, pelo sistema proporcional, em cada Estado, em cada Território e no Distrito Federal". A PEC, por sua vez, diz que, além dos "representantes do povo", a Câmara terá "representantes indígenas eleitos em processo eleitoral distinto, nas comunidades indígenas".
A proposta estabelece ainda que "a totalidade das comunidades indígenas receberá tratamento análogo a Território", isto é, terá direito de ter quatro representantes na Câmara, eleitos por aqueles com domicílio eleitoral nessas comunidades. Esse eleitores, diz o texto, poderão votar nas eleições gerais ou nas eleições específicas para os candidatos indígenas. Assim, a título de resgatar direitos dessa minoria, a proposta lhe concede privilégios políticos.
Nem se pode dizer, aliás, que a Constituição seja omissa em relação aos direitos dos povos indígenas. No artigo 231, reconhecem-se a organização social, os costumes, as línguas, as crenças e as tradições dos índios, além dos "direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens".
Essa deferência especial a um grupo específico entre os diversos que compõem a sociedade brasileira resultou de um eficiente lobby indigenista durante a Constituinte.
Mas isso parece não bastar. Em sua justificativa, a PEC 320 assinala que é preciso ampliar "a participação política de um importante segmento da sociedade", isto é, os povos indígenas, "que têm sido historicamente excluídos de participação na política representativa do País".
Na visão dos parlamentares que propuseram a mudança, a atual Constituição "torna inexequível esse tipo de participação para os indígenas", porque os índios não conseguem eleger seus pares "como legítimos representantes de seus anseios no Congresso Nacional". O mesmo talvez se possa dizer dos ferreiros e dos moleiros.
Seguindo tal lógica, outros grupos sociais poderão no futuro, com igual razão, reivindicar cadeiras exclusivas na Câmara para seus "legítimos representantes". Com o tempo, talvez seja necessário construir até mesmo um novo prédio para o Congresso, para acomodar as cadeiras necessárias para atender a todos os pleitos. O limite disso parece ser apenas a criatividade.
Em lugar do princípio de "um homem, um voto", em que o voto de um cidadão não pode valer mais do que o de outro, estará criado um sistema em que apenas grupos organizados - e, claro, atrelados ao Estado - terão espaço político garantido no Legislativo. O resultado final dessa insanidade, feita em nome de um "modelo democrático comprometido com a verdadeira inclusão social e política", como diz o texto da PEC, é a desmoralização do próprio sistema representativo.
21 de agosto de 2014
Editorial O Estadão
É possível que o Congresso - se estiver realmente interessado em se preservar - destine tais iniciativas, e outras similares que eventualmente apareçam, ao escaninho do esquecimento. Mas o fato é que elas sinalizam a consolidação de um pensamento autoritário que o lulopetismo pretende entranhar nas instituições políticas brasileiras.
A PEC 320 tem vários autores, liderados pelo deputado petista Nilmário Miranda (MG), e tramita desde outubro do ano passado. Ela modifica o artigo 45 da Constituição, que versa sobre a composição da Câmara dos Deputados. O texto original estabelece que a Câmara será formada por "representantes do povo, eleitos, pelo sistema proporcional, em cada Estado, em cada Território e no Distrito Federal". A PEC, por sua vez, diz que, além dos "representantes do povo", a Câmara terá "representantes indígenas eleitos em processo eleitoral distinto, nas comunidades indígenas".
A proposta estabelece ainda que "a totalidade das comunidades indígenas receberá tratamento análogo a Território", isto é, terá direito de ter quatro representantes na Câmara, eleitos por aqueles com domicílio eleitoral nessas comunidades. Esse eleitores, diz o texto, poderão votar nas eleições gerais ou nas eleições específicas para os candidatos indígenas. Assim, a título de resgatar direitos dessa minoria, a proposta lhe concede privilégios políticos.
Nem se pode dizer, aliás, que a Constituição seja omissa em relação aos direitos dos povos indígenas. No artigo 231, reconhecem-se a organização social, os costumes, as línguas, as crenças e as tradições dos índios, além dos "direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens".
Essa deferência especial a um grupo específico entre os diversos que compõem a sociedade brasileira resultou de um eficiente lobby indigenista durante a Constituinte.
Mas isso parece não bastar. Em sua justificativa, a PEC 320 assinala que é preciso ampliar "a participação política de um importante segmento da sociedade", isto é, os povos indígenas, "que têm sido historicamente excluídos de participação na política representativa do País".
Na visão dos parlamentares que propuseram a mudança, a atual Constituição "torna inexequível esse tipo de participação para os indígenas", porque os índios não conseguem eleger seus pares "como legítimos representantes de seus anseios no Congresso Nacional". O mesmo talvez se possa dizer dos ferreiros e dos moleiros.
Seguindo tal lógica, outros grupos sociais poderão no futuro, com igual razão, reivindicar cadeiras exclusivas na Câmara para seus "legítimos representantes". Com o tempo, talvez seja necessário construir até mesmo um novo prédio para o Congresso, para acomodar as cadeiras necessárias para atender a todos os pleitos. O limite disso parece ser apenas a criatividade.
Em lugar do princípio de "um homem, um voto", em que o voto de um cidadão não pode valer mais do que o de outro, estará criado um sistema em que apenas grupos organizados - e, claro, atrelados ao Estado - terão espaço político garantido no Legislativo. O resultado final dessa insanidade, feita em nome de um "modelo democrático comprometido com a verdadeira inclusão social e política", como diz o texto da PEC, é a desmoralização do próprio sistema representativo.
21 de agosto de 2014
Editorial O Estadão
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