Meu amigo caminhava na Borges, ladeava o Parque Marinha, quando passa um ônibus de excursão de colégio. Entre a algazarra escuta algo particular: E aí, careca!. Olha para os lados numa derradeira esperança, mas não resta dúvida, não há mais ninguém, o careca é ele. O ônibus da juventude passou, e ele não estava dentro.
Ele já sabia. Acompanhava triste as partidas cotidianas, o travesseiro lhe fazia confidências, a limpeza do ralo era uma tortura. Porém, nunca tinha ouvido a maldita palavra, e isso faz toda a diferença. Seu antigo cabelo cacheado, que já não consistia, ganhara uma tesourada verbal.
Este foi o último dia de seu lamento, raspou o cabelo. Ao não esconder nada, recuperou a felicidade e a autoestima. Insiste que a única atitude digna de um homem é assumir, pouco importa a idade em que venha o infortúnio. Segundo ele, não se trata de colocar de lado a vaidade e a elegância, mas cabelo é projeção de uma atitude masculina por excelência.
A experiência lhe fez adotar uma filosofia: julga os homens a partir de como tratam a decadência de seus cabelos. Diz que ali moram informações valiosas sobre o caráter masculino. Afirma que já não se engana com eles, e acredita que se as mulheres prestassem atenção a esse detalhe evitariam muitos dissabores.
Para as mulheres, que talvez não nos entendam, falamos da mesma desordem cósmica que afligem os seios e seus problemas com a gravidade, ou a gramática psicótica que cerca o drama da celulite.
Todo homem um dia depara com esse pequeno caos. As entradas, que são o preâmbulo do suplício, só perdem em desespero para o aparecimento da tonsura, o pesadelo cristalizado. É a fase em que os homens entram na dança dos malabarismos capilares, penteados esdrúxulos que passam de cá para lá, de baixo para cima, na tentativa vã de esconder o impossível. Recorremos a tudo, desde o corte melancólico, que é o careca com rabinho, até o desespero alucinado: a peruca. Todas variações de uma enganação patética que não engana ninguém.
A verdade é que o complexo de Sansão nos pega a todos. Nossos cabelos são identificados à potência da juventude, sua queda é prenúncio do outono da vida. Despedir-se deles é duríssimo. Tenho que concordar com meu amigo: a maneira como envelhecemos diz muito de nós.
14 de abril de 2014
Mario Corso, Zero Hora
Ele já sabia. Acompanhava triste as partidas cotidianas, o travesseiro lhe fazia confidências, a limpeza do ralo era uma tortura. Porém, nunca tinha ouvido a maldita palavra, e isso faz toda a diferença. Seu antigo cabelo cacheado, que já não consistia, ganhara uma tesourada verbal.
Este foi o último dia de seu lamento, raspou o cabelo. Ao não esconder nada, recuperou a felicidade e a autoestima. Insiste que a única atitude digna de um homem é assumir, pouco importa a idade em que venha o infortúnio. Segundo ele, não se trata de colocar de lado a vaidade e a elegância, mas cabelo é projeção de uma atitude masculina por excelência.
A experiência lhe fez adotar uma filosofia: julga os homens a partir de como tratam a decadência de seus cabelos. Diz que ali moram informações valiosas sobre o caráter masculino. Afirma que já não se engana com eles, e acredita que se as mulheres prestassem atenção a esse detalhe evitariam muitos dissabores.
Para as mulheres, que talvez não nos entendam, falamos da mesma desordem cósmica que afligem os seios e seus problemas com a gravidade, ou a gramática psicótica que cerca o drama da celulite.
Todo homem um dia depara com esse pequeno caos. As entradas, que são o preâmbulo do suplício, só perdem em desespero para o aparecimento da tonsura, o pesadelo cristalizado. É a fase em que os homens entram na dança dos malabarismos capilares, penteados esdrúxulos que passam de cá para lá, de baixo para cima, na tentativa vã de esconder o impossível. Recorremos a tudo, desde o corte melancólico, que é o careca com rabinho, até o desespero alucinado: a peruca. Todas variações de uma enganação patética que não engana ninguém.
A verdade é que o complexo de Sansão nos pega a todos. Nossos cabelos são identificados à potência da juventude, sua queda é prenúncio do outono da vida. Despedir-se deles é duríssimo. Tenho que concordar com meu amigo: a maneira como envelhecemos diz muito de nós.
14 de abril de 2014
Mario Corso, Zero Hora
Nenhum comentário:
Postar um comentário