A possível prova da inflação cósmica
por Bernardo Esteves
“Só se fala nisso nos últimos dias”, disse Miguel Quartin, professor escalado para conduzir o debate. A audiência não o deixava mentir: as cadeiras estavam quase todas tomadas e havia gente de pé no fundo da sala. Quartin – um rapaz de cabelos claros e barba só nas laterais do rosto – falou por cerca de vinte minutos e respondeu às dúvidas da plateia por outros tantos.
Numa entrevista coletiva noticiada com estardalhaço pela imprensa, o grupo americano afirmara ter obtido a “primeira evidência direta da inflação cósmica”. Nada a ver com poder aquisitivo ou correção monetária: inflação, no caso, designa o processo de expansão abrupta e violenta do universo em seus instantes iniciais, infinitésimos de segundo após o Big Bang.
Há 13,8 bilhões de anos, os átomos que hoje compõem os seres vivos, os oceanos, o Sistema Solar e os bilhões de galáxias estavam todos concentrados num único ponto, inimaginavelmente quente e denso. Isso é o que postula a teoria do Big Bang, formulada nos anos 20 e confirmada quatro décadas depois, com a descoberta de um ruído quase imperceptível que permeia todo o espaço – a radiação cósmica de fundo, uma espécie de reverberação do evento inicial do universo.
A inflação cósmica, um adendo à teoria do Big Bang, foi proposta primeiro pelo americano Alan Guth. Em vez de expandir-se de modo homogêneo desde o momento zero, o universo propagou-se tão brutalmente em seu instante inicial – estamos falando de uma migalha de segundo – que boa parte do que veio a existir avançou pelo nada a uma velocidade maior que a da luz.
Esse breve período de súbita expansão resolveria várias questões teóricas deixadas em aberto. Guth logo percebeu que tinha tido uma ideia das boas. Num caderno em que rabiscava frases e equações para desenvolver a teoria, ele anotou: SACADA GENIAL. A proposta foi acatada e aprimorada por seus colegas, mas faltava provar que não se tratava apenas de mais uma ideia elegante.
Imagine que um tsunami varresse o cosmo alterando momentaneamente a gravidade de cada ponto por onde passasse. Se o universo tiver mesmo passado por uma fase inflacionária, a expansão deve ter provocado um fenômeno parecido, que os cosmólogos chamam de ondas gravitacionais. Não há como observá-las diretamente. Mas, assim como é possível enxergar os estragos causados por um vagalhão, os cientistas conseguem detectar essas ondas a partir da forma como elas afetam a luz e a matéria.
Previram que a tal radiação cósmica de fundo sofreria influência das ondas gravitacionais geradas na inflação. É como se a violência da onda criasse perturbações na geografia – calombos que afetam quem por eles passa.
Telescópios são capazes de medir essas sutis alterações de percurso.
Foi precisamente esse rastro da inflação que os cientistas americanos dizem ter identificado. O grupo trabalhou com dados captados por um telescópio conhecido pela sigla BICEP2. Segundo eles, a chance de o sinal encontrado corresponder a um erro é de uma em 10 milhões.
Mas ainda não se pode afirmar que a inflação cósmica tenha sido provada. Os resultados do BICEP2 precisam ser confirmados por um dos grupos independentes que estão investigando a questão. A ratificação talvez não tarde – as mais recentes medições feitas pelo satélite europeu Planck devem ser divulgadas ainda este ano.
No debate na UFRJ, Miguel Quartin foi cauteloso ao comentar os resultados. Disse que o BICEP2 tinha observado apenas uma porção muito pequena do céu, a qual podia não ser representativa do todo. Acrescentou que o telescópio era mais suscetível a erros por fazer medições numa única frequência, em contraste com as nove monitoradas pelo Planck. “O resultado é muito interessante, mas é muito cedo para tomá-lo como verdade”, ponderou.
O artigo com os resultados do bicep2 está disponível na internet, mas ainda não foi publicado numa revista científica. Dez dias depois do anúncio, já circulavam pela rede quase sessenta artigos de outros pesquisadores comentando os resultados. Na blogosfera e na imprensa, o caráter provisório do anúncio não impediu que a descoberta fosse saudada com entusiasmo, com direito às especulações de praxe sobre quem deveria levar um eventual Nobel pelo feito.
O frenesi tem sua razão de ser. A observação das ondas gravitacionais dos primórdios significa o acesso inédito a um evento ocorrido praticamente no instante zero do universo, num momento em que vigoravam leis físicas diferentes das que operam hoje.
Os resultados devem impulsionar a astronomia de ondas gravitacionais na avaliação de Odylio Aguiar, cientista do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. “Se confirmada, a descoberta abre uma nova janela para a observação do universo”, disse ele numa entrevista telefônica. “E abre em grande estilo, fazendo previsões sobre uma fase importantíssima de seu início.”
Um vídeo da Universidade Stanford publicado na internet retrata melhor do que qualquer artigo a emoção de um cientista diante da confirmação de sua teoria. Gravado antes do anúncio de março, o vídeo mostra Chao-Lin Kuo, um dos líderes da equipe do bicep2, batendo à porta de Andrei Linde, físico russo radicado na Califórnia. A missão de Kuo era dar a notícia a Linde, um dos coautores da teoria da inflação.
O russo não sabia da visita, e muito menos aguardava a confirmação do trabalho de sua vida. Abriu a porta como quem recebe o leiteiro. Viu o colega e não compreendeu. Kuo lhe disse: “Trago boas notícias.” E logo declinou um número. O que se segue deveria ser estudado por todos os atores do planeta: um homem cujo rosto se mantém relativamente sereno, enquanto, por dentro, tudo, absolutamente tudo, muda. Mais tarde, enquanto brindava comKuo, Linde disse que, a princípio, pensou que fosse um entregador batendo à porta. Ocorre que não havia encomendado nada. Mas logo se corrige: “Na verdade, tinha encomendado, sim. Fiz um pedido há trinta anos. Finalmente chegou.”
14 de abril de 2014
Revista Piauí, Abr.14
Nenhum comentário:
Postar um comentário