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O juiz Frederico Maciel considera que quem não usa maconha é culturalmente atrasado e oferece um novo conceito de igualdade, que, para ele, é o direito de poder usar todas as drogas.
A absolvição de um traficante que transportava droga no estômago para dentro de um presídio mostra que a ação da maconha no organismo pode ser menos perigosa do que seu efeito nas instituições.
“O pacote é para saldar dívida de droga de um cara que vai morrer no pavilhão se não fizer o pagamento até as cinco da tarde.”
Drauzio Varella, em “Carcereiros”.
Historicamente, o Judiciário brasileiro sempre foi visto como uma torre de marfim, composto por juízes absolutamente alheios às misérias do povo. A exemplo do antigo lavrador, que ao entrar na sala do patrão amarfanhava o chapéu com as mãos calosas mantendo os olhos humildes nas alpercatas corroídas, também o cidadão comum se encolhe diante da toga, suando sob o terno desconfortável que lhe serve de passaporte no tribunal. As vestes sisudas e a linguagem empolada da Justiça são mais do que suficientes para intimidar a gente simples, que se revolta com esses ritos, por ver neles uma explícita opção preferencial pelos ricos.
Mas o brasileiro que lastimava a arrogância da magistratura nativa era feliz e não sabia. O Judiciário finalmente está saindo de sua torre de marfim – não para fazer Justiça dentro da lei, atendendo aos anseios da maioria do povo, mas para fazer demagogia com a própria toga, cedendo aos gritos da turba minoritária que se recusa a sair das ruas. Todos os dias pelo Brasil afora, em nome de um direito que não está nas leis mas apenas na ideologia dos magistrados, sentenças judiciais cerceiam o direito de ir e vir de todos os cidadãos em nome da liberdade de manifestação de uma minoria, que, estimulada pelo próprio Judiciário, perdeu a noção de limites. Que o digam as cotidianas depredações do patrimônio público e privado em todo o País, especialmente a queima de ônibus, que já se tornou uma epidemia urbana.
Um exemplo de decisão que subverte as leis e inverte valores foi proferida em Brasília em 9 de outubro do ano passado, mas só agora se tornou nacionalmente conhecida. O juiz substituto Frederico Ernesto Cardoso Maciel, da 4ª Vara de Entorpecentes do Distrito Federal, por entender que a maconha não deveria estar incluída entre as drogas ilícitas, absolveu o réu Marcos Vinicius Pereira Borges, que havia sido preso em flagrante ao tentar entrar no Complexo Penitenciário da Papuda com 52 porções da droga no estômago. O Ministério Público recorreu da decisão e, na quinta-feira, 30, os juízes da Terceira Turma do Tribunal de Justiça do Distrito Federal reformaram a decisão de primeira instância, condenando o réu a 2 anos e 11 meses de detenção, em regime semiaberto, além de multa.
Mas o fato de ter sido revogada em segunda instância não torna menos grave a decisão do juiz singular. Mesmo porque não se trata de um ato isolado, mas de um sintoma da época. A maconha – podem anotar – acabará sendo legalizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), sem passar pela aprovação de lei no Congresso, que seria o correto. O uso de drogas envolve fatores sociais e humanos de extrema complexidade, que não podem ser decididos apenas por 11 cabeças coroadas. Mas, pelo que se percebe da plêiade de intelectuais influentes que defendem a maconha, começando pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, a tendência é que o Supremo faça como o juiz de Brasília e considere que fumar maconha é um sagrado direito constitucional. E o que é mais grave: a maconha é apenas o pretexto – o objetivo é legalizar todas as drogas, inclusive drogas pesadíssimas como o crack, que, aliás, já foi legalizado na prática. Se isso ocorrer, ação da maconha no organismo será menos daninho do que seu efeito nas instituições.
Com a maconha no estômago
Para absolver o homem que tentou entrar com maconha no presídio da Papuda, o juiz Frederico Maciel reconhece que a conduta praticada e confessada pelo acusado, além de comprovada materialmente, “parece se adequar” àquela descrita na Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006, que trata da política nacional sobre drogas, especificamente os artigos 33, que trata do tráfico de entorpecentes, e o artigo 40, que agrava a pena quando o tráfico é realizado nas dependências ou imediações de escolas, hospitais, presídios etc. “Contudo, no meu entender, há inconstitucionalidade e ilegalidade nos atos administrativos que tratam da matéria”, afirma o juiz em sua decisão, investindo contra a portaria da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) que serve de regulamentação à referida lei.
Escreve o magistrado: “Com efeito, o art. 33, caput, da Lei 11.343/06 é classificado pela doutrina do Direito Penal como norma penal em branco o que, em brevíssima síntese, é aquela que depende de um complemento normativo, a fim de permitir de forma mais rápida a regulamentação de determinadas condutas”. Ora, a regulamentação de uma lei não tem nada a ver com pressa, mas com esclarecimento. Se uma norma fala genericamente em “drogas”, como é o caso da lei em questão, só se pode saber se alguém é traficante esclarecendo dois pontos: que substância ele está transportando e se essa substância é considerada droga ilícita à luz de outros documentos oficiais, já que a própria lei não especifica quais são as drogas proibidas. O parágrafo único do artigo 1º da Lei 11.343 deixa isso claro: “Para fins desta Lei, consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União”.
Em seguida, o magistrado afirma: “O Ministério da Saúde, por meio da Portaria 344/1998, com o objetivo de complementar a norma do art. 33, caput, da lei 11343/06, estabeleceu um vastíssimo rol de substâncias sujeitas à controle e, sem qualquer justificativa constante na referida portaria, na lista F, proibiu, entre outras, o THC”. Registre-se que essa crase antes de “controle” é uma das muitas incorreções gramaticais que aparecem na curta sentença de apenas duas páginas. Mais grave, ainda, são os equívocos jurídicos da sentença, começando pelo fato de que o juiz atribui ao Ministério da Saúde uma portaria que é da Anvisa. Apesar de vinculada ao Ministério da Saúde (instância também política), a Anvisa é ou deve ser exclusivamente técnica. Trata-se de uma agência reguladora com independência administrativa, autonomia financeira e estabilidade de seus dirigentes.
Drogas e consenso científico
Além disso, como é que a Portaria 344, de 12 de maio de 1998, editada no governo Fernando Henrique Cardoso, poderia ter como objetivo regulamentar uma lei que só seria promulgada oito anos depois, em 23 de agosto de 2006, em pleno governo Lula? Primeiro, a lei, depois, sua regulamentação, e não o contrário, obviamente. Por não atentar para essas datas, apesar de citá-las como apêndices das normas, é que o juiz acusa de ser discricionária a portaria que elenca as drogas ilícitas, acreditando que a listagem das drogas foi feita para regulamentar a lei, quando, na verdade, as normas da Vigilância Sanitária devem atender, primeiramente, o consenso científico em torno da matéria. São como as portarias do Conselho Federal de Medicina, que se enquadram no arcabouço legal do País, mas dispõem de autonomia técnico-científica; afinal quem define a etiologia de uma doença e a enquadra na CID (Classificação Internacional de Doenças) não é o Legislativo, mas a comunidade médica.
O preâmbulo da Portaria 344 deixa isso claro ao informar que as normas por ela estabelecidas têm origem, entre outras fontes, na Convenção Única sobre Entorpecentes, de 1961, na Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, e na Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, de 1988. Desconsiderando todo esse aporte técnico-científico, o juiz tratou a portaria da Anvisa como um ato arbitrário, sem pé nem cabeça: “O ato administrativo, em especial o discricionário restritivo de direitos, diante dos direitos e garantias fundamentais e também dos princípios constitucionais contidos no art. 37 da Constituição da República devem ser devidamente motivados, sob pena de permitir ao Administrador atuar de forma arbitrária e de acordo com a sua própria vontade ao invés da vontade da lei”. (Reparem na falta da vírgula depois de “República” e no erro de concordância, pois o ato administrativo, singular, é o sujeito do verbo “dever”.)
Com base nessa premissa, o juiz afirma: “A Portaria 344/98, indubitavelmente um ato administrativo que restringe direitos, carece de qualquer motivação por parte do Estado e não justifica os motivos pelos quais incluem a restrição de uso e comércio de várias substâncias, em especial algumas contidas na lista F, como o THC, o que, de plano, demonstra a ilegalidade do ato administrativo. Sem motivação, tal norma fica incapaz de poder complementar a norma penal do art. 33, caput, da lei 11343/06”. Ora, a referida norma não é mero ato administrativo que restringe direitos: ela é o “Regulamento Técnico sobre Substâncias e Medicamentos Sujeitos a Controle Especial”. Todos os remédios controlados são também regulamentados por essa portaria, que tem 110 artigos e vários apêndices; por isso, é um absurdo um juiz dizer que a mesma “carece de qualquer motivação”, ao mesmo tempo em que a acusa de não justificar a inclusão das substâncias em sua lista, como se fosse possível – e necessário – reproduzir numa portaria os tratados científicos sobre cada psicotrópico.
Desastre lógico e gramatical
Mas o juiz Frederico Maciel não se contenta em querer saber mais sobre psicotrópicos do que os técnicos da Anvisa – ele também se arvora a filosofar. E incorre num desastre lógico e gramatical. Eis o que escreve: “Ademais, ainda que houvesse qualquer justificativa ou motivação expressa do órgão do qual emanou o ato administrativo restritivo de direitos, a proibição do consumo de substâncias químicas deve sempre atender aos direitos fundamentais da igualdade, da liberdade e da dignidade humana. Soa incoerente o fato de outras substâncias entorpecentes, como o álcool e o tabaco, serem não só permitidas e vendidas, gerando milhões de lucro para os empresários dos ramos, mas consumidas e adoradas pela população, o que demonstra também que a proibição de outras substâncias entorpecentes recreativas, como o THC, são fruto de uma cultura atrasada e de política equivocada e violam o princípio da igualdade, restringindo o direito de uma grande parte da população de utilizar outras substâncias”.
Reparem outra vez na concordância, aliás, na discordância: o magistrado escreve “são fruto de uma cultura atrasada”, sendo que o sujeito dessa frase é “a proibição”. Além disso, a frase “milhões de lucro para os empresários dos ramos” não é digna da pena de um magistrado; quando muito caberia numa redação do Enem. Outra afirmação desrespeitosa é dizer que o álcool e o tabaco são substâncias entorpecentes “consumidas e adoradas pela população”. Segundo o Relatório Brasileiro sobre Drogas de 2010, editado pela Presidência da República, 18,4% dos brasileiros relataram consumo de tabaco no mês; 19,2% no ano e 44% na vida. Já o consumo de álcool foi de 38,3% no mês, 49,8% no ano e 74,6% na vida. Ou seja, não se pode dizer que a maioria da população brasileira consome e adora essas drogas, mesmo porque até muitos bêbados e fumantes não adoram seus respectivos vícios: sabem que se trata de um mal, apenas não conseguem largá-los.
O juiz considera que quem não usa maconha é culturalmente atrasado e oferece um novo conceito de igualdade, que, para ele, é o direito de poder usar todas as drogas. Também faz uma inegável apologia da substância ativa da maconha: “O THC é reconhecido por vários outros países como substância entorpecente de caráter recreativo e medicinal, diante de seu baixo poder nocivo e viciante e ainda de seu poder medicinal para a saúde do usuário, sem mencionar que em outros o seu uso é reconhecido como parte da cultura”. Ora, senhor juiz, que país legalizou a maconha por reconhecer “seu poder medicinal para a saúde do usuário?”. Todo país que legaliza a maconha não o faz por razões medicinais, mas por pragmatismo: dos males o menor, acreditam, ao comparar o uso da droga com o custo para combatê-la.
Além disso, nenhuma substância entorpecente é, em si mesma, de caráter recreativo, como o magistrado afirma a respeito da maconha. Algo que modifica funções do cérebro não pode ser tratado como brincadeira. Até mesmo o tabaco e o álcool, drogas legais, podem gerar dependência e crise de abstinência. O caráter recreativo não é da droga, mas do uso. Se o sujeito fuma um ou outro cigarro só em festas, para acompanhar os amigos, ele faz um uso recreativo da droga; mas se é um fumante inveterado que acende um cigarro no outro e não abandona o vício nem por recomendação médica, então é ele um dependente, para quem o tabaco não é passatempo, mas vício. É claro que há drogas que geram mais dependência, como o crack e o tabaco, e outras que geram menos dependência, como a própria maconha. Mas uma droga leve, dependendo da intensidade do uso, pode se tornar pesada.
Males que a maconha provoca
O opúsculo “Drogas Psicotrópicas”, do Cebrid (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas), afirma que há certo exagero sobre os aspectos maléficos da maconha e destaca seus efeitos medicinais no combate a náuseas e vômitos motivados pela medicação anticâncer e também na epilepsia. Mesmo assim, o informativo deixa claro que a maconha tem efeitos perniciosos, afetando a noção de espaço e de tempo e especialmente a memória de curto prazo. “Sob a ação da maconha, a pessoa erra grosseiramente na discriminação do tempo, tendo a sensação de que se passaram horas quando na realidade foram alguns minutos; um túnel com 10m de comprimento pode parecer ter 50 ou 100m”, afirma o Cebrid, que recomenda às pessoas sob efeito de maconha não realizarem tarefas que dependam de “atenção, bom senso e discernimento”, como dirigir carro e operar máquinas.
Ainda sobre a maconha, o Cebrid também alerta: “Aumentando-se a dose e/ou dependendo da sensibilidade, os efeitos psíquicos agudos podem chegar até a alterações mais evidentes, com predominância de delírios e alucinações”. Já em 1845, o psiquiatra francês Moreau de Tors (1804-1884) associou o uso da maconha à ocorrência de sintomas psicóticos. Em 1987, o médico sueco Sven Andréasson e sua equipe publicaram uma pesquisa com 45.570 militares, ao longo de 15 anos de acompanhamento, e chegaram à conclusão de que o uso pesado da maconha (50 ocasiões nesse período) foi relacionado a um risco seis vezes maior de desencadeamento da esquizofrenia em relação aos não usuários.
A maconha pode sim causar dependência e pesquisa do psiquiatra britânico Stanley Zammit (no detalhe) com mais de 50 mil pessoas constatou que o uso da erva aumenta o risco de desenvolver esquizofrenia.Como as conclusões desse estudo foram questionadas, o psiquiatra britânico Stanley Zammit fez uma pesquisa com 50.087 indivíduos chegando à mesma conclusão da pesquisa anterior – o uso de maconha está associado a um risco maior de desenvolvimento da esquizofrenia. Posteriormente, em artigo publicado na revista “The Lancet”, em julho de 2007, Zammit, juntamente com outros pesquisadores, fez uma revisão sistemática das pesquisas sobre o assunto e corroborou os resultados de pesquisas anteriores: “Podemos concluir que agora existe evidência suficiente para alertar os jovens que o uso de cannabis pode aumentar o seu risco de desenvolver uma doença psicótica mais tarde na vida”.
Dando de ombros para o conhecimento acumulado de psiquiatras, bioquímicos e outros cientistas que estudam os efeitos das drogas psicotrópicas, o juiz prefere se apegar a decisões políticas de países que liberaram a maconha e até à opinião do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, citado como autoridade em sua sentença, apesar de não lhe mencionar o nome. “Não é por outro motivo que os estados americanos da Califórnia, Washington e Colorado e os Países Baixos, dentre vários outros, permitem não só o uso recreativo e medicinal da droga como também a sua venda, devidamente regulamentada, e outros países permitem somente o uso, como Espanha, dentre outros, e o Uruguay está praticamente a ponto de, a exemplo desses outros entes do Direito Internacional, regulamentar a venda e o uso do THC”, afirma o magistrado.
Ora, se a maconha fosse tão inofensiva como acredita o juiz, por que razão apenas alguns Estados norte-americanos a liberaram e por que em todos os locais em que isso ocorreu tenta-se controlar sua venda, inclusive na Holanda e no Uruguai (que não se escreve com “y” num texto em português)? O próprio juiz manda incinerar a droga apreendida no final de sua sentença, numa prova de que, no íntimo, ele sabe que sua decisão é problemática. Ocorre que o ativismo judicial, além de querer tomar o lugar do parlamento, também se arvora a ser o feitor do povo brasileiro, a quem acusa de ter uma “cultura atrasada”. Aliás, o juiz Frederico Maciel – que é bem pago por esse povinho de “cultura atrasada” – faria mais pelo avanço de nossa cultura se cuidasse melhor do idioma de Vieira, Eça e Machado.
Todavia, ainda que se reconheça que a maconha pode ser usada de forma recreativa, é óbvio que o caso julgado pelo juiz jamais poderia ser considerado dessa forma. O que pode haver de recreativo no ato de engolir 52 poções de maconha para depois vomitá-las dentro de um presídio? Sem contar que esse “aviãozinho” só poderia estar a serviço de um traficante com muito poder na cadeia. Justamente o tipo de traficante que cobra com a morte as dívidas de drogas ou então comuta a pena capital em pena sexual, exigindo que a mulher, a irmã ou a filha do viciado inadimplente pague com o próprio corpo a vida imprestável do pai. Talvez seja isso o que se possa considerar o “caráter recreativo da maconha” – pela ótica de um traficante, claro, jamais pela ótica de um juiz.
Publicado no Jornal Opção.
08 de fevereiro de 2014
José Maria e Silva é sociólogo e jornalista.
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