O Supremo Tribunal Federal julgará em breve a ação em que depositantes de caderneta de poupança reivindicam supostas perdas com planos de estabilização. A decisão será da maior importância para a economia.
Somos o único país onde perdas inflacionárias, reais ou fictícias, puderam ser formalmente estimadas. Essa é a pior herança do processo de indexação generalizada de preços, salários e contratos à inflação passada. Tudo começou em 1964, no esforço para restaurar a confiança no Tesouro Nacional — incluindo sua capacidade de financiar-se sem emitir dinheiro — e para incentivar as famílias a poupar. O Tesouro precisava ainda evitar a corrosão inflacionária das suas receitas. O setor público era, como hoje, a fonte básica das pressões inflacionárias. Tais objetivos foram alcançados mediante a criação das Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional (ORTNs) — cuja variação se aplicava aos tributos em atraso — e de cadernetas de poupança com correção monetária.
Mesmo assim, a inflação permaneceu alta. Levou nove anos para baixar de 92,1% (1964) para 15,5% (1973). Por isso, a indexação começou a se espalhar pelos contratos e preços. A inflação voltou a subir (34,5% em 1974), impulsionada adicionalmente pela quadruplicação do preço do petróleo. A indexação se ampliou. Em 1979, os salários passaram a ser reajustados semestralmente pela inflação passada. Quanto mais curto o período de indexação, mais a inflação se acelerava. Saltou para três dígitos em 1980 e não parou de subir. Atingiu quatro dígitos em 1988. Instalou-se de vez a "inércia inflacionária", pela qual a inflação de hoje influenciava a de amanhã, e assim sucessivamente. O déficit público e a expansão monetária aceleravam o processo.
Esse tipo de inflação não podia ser vencido de forma convencional, via controle de gastos públicos e alta da taxa de juros. A quebra da inércia exigiria um nível de recessão e desemprego que seria social e politicamente insustentável. Havia que encontrar uma forma de eliminar a indexação. O congelamento de preços, salários e contratos pareceu então o mais adequado, proibindo-se reajustes com base na inflação passada em intervalo inferior a um ano. Foram cinco tentativas malsucedidas entre 1986 e 1991.
A característica básica dos planos era a queda brusca da inflação, o que exigia lidar com seus respectivos efeitos. Aluguéis, cadernetas de poupança, salários e outros contratos não podiam ser reajustados pela inflação do mês anterior para evitar a transferência de renda entre grupos. Buscou-se, assim, a maior neutralidade possível em termos distributivos. A sensação, infelizmente, foi quase sempre a de perdas de um grupo para outro: do locador para o locatário, da caderneta de poupança para os bancos, dos assalariados para as empresas, e assim por diante.
Vários estudos provam que não existiram perdas, menos ainda para as cadernetas de poupança. Mesmo aceitando-se que elas tivessem sido corrigidas abaixo da inflação, não se poderia dizer que os bancos lucraram com isso. Bancos são como supermercados, que compram mercadorias de um lado e vendem de outro. Eles recebem depósitos dos que dispõem de recursos e os emprestam a quem deles precisa. Ganham na diferença de taxas de juros. Seus empréstimos imobiliários foram reajustados pelo mesmo índice das cadernetas. Logo, se houvesse ganhadores. estes seriam os devedores, e não os bancos.
Se o STF acolher o pedido dos depositantes, os bancos perderão cerca de 150 bilhões de reais, conforme estimativas confiáveis, inclusive do governo. Em algum momento esse custo será transferido ao Tesouro, isto é, à sociedade. Os bancos estatais — que detêm mais da metade das cadernetas — teriam de ser capitalizados. Os bancos privados reivindicariam indenização, pois foi o governo, com a aprovação do Congresso, que fixou os índices de correção. A descapitalização acarretaria forte contração de crédito, pois os bancos somente podem emprestar um múltiplo dos recursos próprios. Haveria redução drástica da atividade econômica e do emprego. A confiança na economia despencaria.
Se o STF não considerar as realidades do caso. poderá contribuir para um desastre econômico e social de graves dimensões.
Somos o único país onde perdas inflacionárias, reais ou fictícias, puderam ser formalmente estimadas. Essa é a pior herança do processo de indexação generalizada de preços, salários e contratos à inflação passada. Tudo começou em 1964, no esforço para restaurar a confiança no Tesouro Nacional — incluindo sua capacidade de financiar-se sem emitir dinheiro — e para incentivar as famílias a poupar. O Tesouro precisava ainda evitar a corrosão inflacionária das suas receitas. O setor público era, como hoje, a fonte básica das pressões inflacionárias. Tais objetivos foram alcançados mediante a criação das Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional (ORTNs) — cuja variação se aplicava aos tributos em atraso — e de cadernetas de poupança com correção monetária.
Mesmo assim, a inflação permaneceu alta. Levou nove anos para baixar de 92,1% (1964) para 15,5% (1973). Por isso, a indexação começou a se espalhar pelos contratos e preços. A inflação voltou a subir (34,5% em 1974), impulsionada adicionalmente pela quadruplicação do preço do petróleo. A indexação se ampliou. Em 1979, os salários passaram a ser reajustados semestralmente pela inflação passada. Quanto mais curto o período de indexação, mais a inflação se acelerava. Saltou para três dígitos em 1980 e não parou de subir. Atingiu quatro dígitos em 1988. Instalou-se de vez a "inércia inflacionária", pela qual a inflação de hoje influenciava a de amanhã, e assim sucessivamente. O déficit público e a expansão monetária aceleravam o processo.
Esse tipo de inflação não podia ser vencido de forma convencional, via controle de gastos públicos e alta da taxa de juros. A quebra da inércia exigiria um nível de recessão e desemprego que seria social e politicamente insustentável. Havia que encontrar uma forma de eliminar a indexação. O congelamento de preços, salários e contratos pareceu então o mais adequado, proibindo-se reajustes com base na inflação passada em intervalo inferior a um ano. Foram cinco tentativas malsucedidas entre 1986 e 1991.
A característica básica dos planos era a queda brusca da inflação, o que exigia lidar com seus respectivos efeitos. Aluguéis, cadernetas de poupança, salários e outros contratos não podiam ser reajustados pela inflação do mês anterior para evitar a transferência de renda entre grupos. Buscou-se, assim, a maior neutralidade possível em termos distributivos. A sensação, infelizmente, foi quase sempre a de perdas de um grupo para outro: do locador para o locatário, da caderneta de poupança para os bancos, dos assalariados para as empresas, e assim por diante.
Vários estudos provam que não existiram perdas, menos ainda para as cadernetas de poupança. Mesmo aceitando-se que elas tivessem sido corrigidas abaixo da inflação, não se poderia dizer que os bancos lucraram com isso. Bancos são como supermercados, que compram mercadorias de um lado e vendem de outro. Eles recebem depósitos dos que dispõem de recursos e os emprestam a quem deles precisa. Ganham na diferença de taxas de juros. Seus empréstimos imobiliários foram reajustados pelo mesmo índice das cadernetas. Logo, se houvesse ganhadores. estes seriam os devedores, e não os bancos.
Se o STF acolher o pedido dos depositantes, os bancos perderão cerca de 150 bilhões de reais, conforme estimativas confiáveis, inclusive do governo. Em algum momento esse custo será transferido ao Tesouro, isto é, à sociedade. Os bancos estatais — que detêm mais da metade das cadernetas — teriam de ser capitalizados. Os bancos privados reivindicariam indenização, pois foi o governo, com a aprovação do Congresso, que fixou os índices de correção. A descapitalização acarretaria forte contração de crédito, pois os bancos somente podem emprestar um múltiplo dos recursos próprios. Haveria redução drástica da atividade econômica e do emprego. A confiança na economia despencaria.
Se o STF não considerar as realidades do caso. poderá contribuir para um desastre econômico e social de graves dimensões.
03 de fevereiro de 2014
Maílson da Nóbrega, Revista Veja
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