É cedo para decretar a morte do cinema, ainda que a quantidade de bobagens mostradas nas telas de 2013 tenha sido colossal
É cedo para decretar a morte do cinema, ainda que a quantidade de bobagens mostradas nas telas de 2013 tenha sido colossal. Até onde a memória alcança, todos os anos são assim. Só nos períodos em que o mundo e a vida se tornam interessantes os filmes melhoram. Os saltos de qualidade costumam acontecer na forma de movimentos nacionais. Foi assim com o cinema soviético dos anos 1920, o neorrealismo italiano do pós-guerra, a nouvelle vague francesa e o cinema novo brasileiro na década de 60, os filmes americanos dos 70.
Entre um surto e outro há dúzias de bons filmes, claro, feitos por talentos individuais que atuam em condições favoráveis. Além do que, a arte tem um núcleo de mistério e mágica. Mas hoje o movimento geral é de conformismo estético e inércia industrial. A cadência do sistema exige lançamentos bombásticos, filmes arrasa-quarteirão que mobilizam investimentos formidáveis. Para darem retorno, eles buscam atingir o público por meio do sadismo.
A pasmaceira artística é disfarçada pela tecnologia, da qual os filmes se tornaram caudatários. Vai-se ao cinema para estontear-se com a trepidação sensurround, atarantar-se com o Imax, deixar-se entorpecer pelas explosões em Dolby e 3D — além de comer pipoca, conversar alto com os amigos, checar o celular e responder mensagens. (Há progresso real também: comprar pela internet o ingresso com lugar marcado é escapar das filas).
O cinema americano continuou a sua saga de embrutecimento e emburrecimento. As quatro maiores bilheterias nos Estados Unidos foram “Homem de Ferro 3”, “Meu malvado favorito 2”, “Jogos vorazes 2” e “O Homem de Aço”, a enésima franquia com Super-Homem. Ou seja, foram continuações; basearam-se em histórias em quadrinhos e livros para adolescentes; sobrepuseram efeitos especiais a uma dramaturgia esquálida.
O conteúdo deles é a violência. São cenas e mais cenas com corpos destroçados, explosões de pessoas e prédios, chantagem psicológica, pancadaria coreografada, tortura explícita. O cinema americano adestra o público, sobretudo as novas gerações, para a bestialidade do mundo que os Estados Unidos comandam. Sistemática, a truculência torna a barbaridade corriqueira. Fantasias de destruição são tidas como filmes para crianças. Na verdade, são filmes educativos.
A complexidade deles aumentou neste ano. “Jogos vorazes 2” mostra uma elite mundial que domina massas escravizadas. Ela monta um reality show em que adolescentes matam uns aos outros, para gáudio de proletários cruéis. Em “Elysium”, a elite nem mora na Terra. Mudou-se para um condomínio fechado que orbita em torno do planeta. Lá, privilegiados tomam coquetéis entre jardins floridos e desfrutam do melhor plano de saúde jamais visto, o que evita até a interação humana. Embaixo, a plebe rala num trabalho insalubre e incompreensível, o banditismo campeia, policiais-robôs batem indiscriminadamente, o mundo é uma favela sem fim.
É presumível que no próximo “Jogos vorazes” a ditadura mundial de Donald Sutherland — um mestre em risadinhas sinistras e sobrancelhas arqueadas — seja devidamente destronada pela heroína boazinha. Em “Elysium”, Matt Damon acabou sozinho com o condomínio dos biliardários. Hollywood não aposentou a lógica do final feliz.
Os minutos finais de redenção não alteram a escatologia que sustenta as superproduções. De “Círculo de fogo” a “Guerra Mundial Z”, o apocalipse já aconteceu, vale o salve-se quem puder, a guerra de todos contra todos, a solidão que se afirma na destruição dos outros. A atrocidade nas telas atinge então os píncaros. Triste consolo: por ter homofonia com a realidade, ela é superior à patriotada de “Lincoln” e ao racismo de “Capitão Phillips”.
Nesse panorama, outras cinematografias nacionais encolhem. Os filmes franceses (os que chegam aqui) mais e mais se refugiam na temática do relacionamento íntimo. São romancezinhos insossos, famílias mais ou menos desajustadas, vidas que pairam num vácuo social. Assemelham-se a “Gravidade”, só que sem tecnologia e sem Mallarmé: em vez do silêncio eterno de espaços infinitos que apavoram, falatório incessante. No Brasil, deram o tom as comédias em que todos berram e fazem caretas.
As exceções, na França e no Brasil, foram “Azul é a cor mais quente” e “O som ao redor”, filmes criativos que enriquecem o espectador mesmo quando deles se discorda. (“O som ao redor” é chatíssimo, mas não é obrigação da arte autêntica ser agradável ou bela). Anomalia houve até nos Estados Unidos, com “Blue Jasmine”. Ao mostrar um país dividido, no qual uma classe se aproveita da outra, Woody Allen não fez uma tese sociológica. Expôs personagens e riu deles. É uma mágica e mistério do cinema que o filme seja um prodígio de profundidade.
É cedo para decretar a morte do cinema, ainda que a quantidade de bobagens mostradas nas telas de 2013 tenha sido colossal. Até onde a memória alcança, todos os anos são assim. Só nos períodos em que o mundo e a vida se tornam interessantes os filmes melhoram. Os saltos de qualidade costumam acontecer na forma de movimentos nacionais. Foi assim com o cinema soviético dos anos 1920, o neorrealismo italiano do pós-guerra, a nouvelle vague francesa e o cinema novo brasileiro na década de 60, os filmes americanos dos 70.
Entre um surto e outro há dúzias de bons filmes, claro, feitos por talentos individuais que atuam em condições favoráveis. Além do que, a arte tem um núcleo de mistério e mágica. Mas hoje o movimento geral é de conformismo estético e inércia industrial. A cadência do sistema exige lançamentos bombásticos, filmes arrasa-quarteirão que mobilizam investimentos formidáveis. Para darem retorno, eles buscam atingir o público por meio do sadismo.
A pasmaceira artística é disfarçada pela tecnologia, da qual os filmes se tornaram caudatários. Vai-se ao cinema para estontear-se com a trepidação sensurround, atarantar-se com o Imax, deixar-se entorpecer pelas explosões em Dolby e 3D — além de comer pipoca, conversar alto com os amigos, checar o celular e responder mensagens. (Há progresso real também: comprar pela internet o ingresso com lugar marcado é escapar das filas).
O cinema americano continuou a sua saga de embrutecimento e emburrecimento. As quatro maiores bilheterias nos Estados Unidos foram “Homem de Ferro 3”, “Meu malvado favorito 2”, “Jogos vorazes 2” e “O Homem de Aço”, a enésima franquia com Super-Homem. Ou seja, foram continuações; basearam-se em histórias em quadrinhos e livros para adolescentes; sobrepuseram efeitos especiais a uma dramaturgia esquálida.
O conteúdo deles é a violência. São cenas e mais cenas com corpos destroçados, explosões de pessoas e prédios, chantagem psicológica, pancadaria coreografada, tortura explícita. O cinema americano adestra o público, sobretudo as novas gerações, para a bestialidade do mundo que os Estados Unidos comandam. Sistemática, a truculência torna a barbaridade corriqueira. Fantasias de destruição são tidas como filmes para crianças. Na verdade, são filmes educativos.
A complexidade deles aumentou neste ano. “Jogos vorazes 2” mostra uma elite mundial que domina massas escravizadas. Ela monta um reality show em que adolescentes matam uns aos outros, para gáudio de proletários cruéis. Em “Elysium”, a elite nem mora na Terra. Mudou-se para um condomínio fechado que orbita em torno do planeta. Lá, privilegiados tomam coquetéis entre jardins floridos e desfrutam do melhor plano de saúde jamais visto, o que evita até a interação humana. Embaixo, a plebe rala num trabalho insalubre e incompreensível, o banditismo campeia, policiais-robôs batem indiscriminadamente, o mundo é uma favela sem fim.
É presumível que no próximo “Jogos vorazes” a ditadura mundial de Donald Sutherland — um mestre em risadinhas sinistras e sobrancelhas arqueadas — seja devidamente destronada pela heroína boazinha. Em “Elysium”, Matt Damon acabou sozinho com o condomínio dos biliardários. Hollywood não aposentou a lógica do final feliz.
Os minutos finais de redenção não alteram a escatologia que sustenta as superproduções. De “Círculo de fogo” a “Guerra Mundial Z”, o apocalipse já aconteceu, vale o salve-se quem puder, a guerra de todos contra todos, a solidão que se afirma na destruição dos outros. A atrocidade nas telas atinge então os píncaros. Triste consolo: por ter homofonia com a realidade, ela é superior à patriotada de “Lincoln” e ao racismo de “Capitão Phillips”.
Nesse panorama, outras cinematografias nacionais encolhem. Os filmes franceses (os que chegam aqui) mais e mais se refugiam na temática do relacionamento íntimo. São romancezinhos insossos, famílias mais ou menos desajustadas, vidas que pairam num vácuo social. Assemelham-se a “Gravidade”, só que sem tecnologia e sem Mallarmé: em vez do silêncio eterno de espaços infinitos que apavoram, falatório incessante. No Brasil, deram o tom as comédias em que todos berram e fazem caretas.
As exceções, na França e no Brasil, foram “Azul é a cor mais quente” e “O som ao redor”, filmes criativos que enriquecem o espectador mesmo quando deles se discorda. (“O som ao redor” é chatíssimo, mas não é obrigação da arte autêntica ser agradável ou bela). Anomalia houve até nos Estados Unidos, com “Blue Jasmine”. Ao mostrar um país dividido, no qual uma classe se aproveita da outra, Woody Allen não fez uma tese sociológica. Expôs personagens e riu deles. É uma mágica e mistério do cinema que o filme seja um prodígio de profundidade.
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