Cenas como as da semana passada em Joinville eram rotina no país há trinta anos. Mas, pondo os vândalos na cadeia e construindo estádios modernos, as autoridades jogaram os brigões para escanteio
Alexandre Salvador e Pieter Zalis
SELVAGERIA IMPUNE - Da horda de arruaceiros, alguns já identificados, apenas três estão presos: um deles é Leone Mendes da Silva, o Curimim (acima, com um pedaço de madeira nas mãos), torcedor do Vasco (Fotos Joka Madruga/Futura Press: Paulo Sergio/Lance Press e Heuler Andrey/AFP)
Não há dúvida: de costas para o gramado, 2013 foi um ano perdido. Em fevereiro, um sinalizador disparado pela torcida do Corinthians matou um garoto de 14 anos em Oruro, na Bolívia. Doze brasileiros foram presos, mas por falta de provas (e pela conveniente confissão de um torcedor menor de idade) todos foram liberados.
Para encerrar a temporada, no domingo 8, torcedores do Atlético-PR e do Vasco promoveram uma batalha no estádio de Joinville, em Santa Catarina, na última rodada do Campeonato Brasileiro.
Ninguém morreu, embora a brutalidade das duas torcidas fosse suficiente para reverberar as estatísticas da violência no futebol — foram trinta mortes apenas neste ano. Lembra-se da definição que abre esta reportagem? Explica o futebol brasileiro, mas foi usada originalmente para descrever a situação da Inglaterra nos anos 1980, que era ainda pior do que a que se vê por aqui a seis meses do início da Copa do Mundo.
Há trinta anos, a violência dos torcedores ingleses mais inconsequentes, conhecidos como hooligans, provocou a exclusão das equipes do país das competições europeias por cinco anos. A razão foi a morte de 39 torcedores da Juventus, da Itália, em confronto com aficionados do Liverpool, em um jogo da Copa dos Campeões da Europa, disputado no Estádio de Heysel, em Bruxelas, na Bélgica, em 1985.
Os hooligans causavam terror nas ruas e nos campos. Ocupavam as áreas mais populares dos estádios, os chamados terraces, e de lá promoviam o caos, com sessões de pancadaria e invasões de gramado. A então primeira-ministra britânica, Margaret Thatcher, tratou de lidar com o problema à sua maneira: forte repressão policial e isolamento dos hooligans.
Para conter os arruaceiros, foram instaladas grades pontiagudas, eletrificadas e com arame farpado no topo. Engaiolados, os torcedores se apinhavam como se estivessem enjaulados.
A situação foi se deteriorando até 1989, quando ocorreu a maior tragédia. Na semifinal da Copa da Inglaterra, uma massa de torcedores do Liverpool que tentava chegar ao estádio de Hillsborough, um dos mais modernos do país à época, foi forçando a entrada pelos portões. A superlotação, aliada à falta de sinalização, esmagou os torcedores contra a grade que separava o campo das arquibancadas. Noventa e seis pessoas morreram esmagadas.
As autoridades britânicas decidiram reagir. O magistrado Peter Murray Taylor foi encarregado de preparar um relatório sobre a tragédia. É dele a frase inicial deste texto, que associou a violência a uma marca indelével no país que inventou o futebol. Em seu relatório final, de janeiro de 1990, Taylor propôs uma transformação radical no futebol inglês. “O comportamento e a segurança da multidão estão diretamente relacionados à qualidade das acomodações e instalações”, concluiu.
Desde Hillsborough, trinta estádios foram construídos e centenas foram reformados (nesse aspecto, o legado das belas arenas erguidas para a Copa de 2014 pode ser muito bom). Os terraces, habitat favorito dos hooligans, foram preenchidos com cadeiras. Os estádios dos times de primeira e segunda divisões passaram a ter assentos para todos os espectadores.
Aliada à reforma dos estádios, foi criada uma política de prevenção da violência. Em vez de tentar conter os baderneiros depois do início dos confrontos, a polícia passou a identificá-los previamente.
Todos os times ingleses tiveram de instalar em seus estádios sistemas de monitoramento por câmeras. Com esse aparato, a polícia faz uma varredura virtual à procura de torcedores brigões. Assim que um hooligan é localizado, é retirado do estádio. O embate entre policiais e torcida foi substituído pelo trabalho discreto de inteligência. Há um oficial escalado para estudar o comportamento dos torcedores de cada clube profissional inglês. Ele informa à polícia a identidade daqueles potencialmente mais perigosos.
Depois da tragédia de Hillsborough (acima), em 1989, a Inglaterra transformou os estádios e a estratégia de policiamento. Recentemente, a Turquia adotou uma política extrema: apenas mulheres e crianças na plateia
Países que seguiram o exemplo inglês, como Alemanha e Espanha, também conseguiram controlar seus hooligans. “O exemplo inglês foi decisivo para todo o futebol europeu”, disse a VEJA o alemão Heinz Palme, diretor do Centro Internacional para a Segurança no Esporte. “A Inglaterra reforçou a tese de que, quando a casa está limpa e organizada, os visitantes tendem a mantê-la assim.” Outro país que sofre com brigas nas arquibancadas, a Turquia, inovou. Em 2011, proibiu a entrada de homens adultos como punição a times cuja torcida se envolvesse em brigas. Apenas mulheres e crianças puderam frequentar as arquibancadas. Mas a medida foi inócua. Os homens voltaram e as brigas prosseguiram.
No Brasil, duas questões explicam a violência persistente, cujo ápice se deu na última rodada do Campeonato Brasileiro: as penas brandas previstas no Estatuto do Torcedor e a impunidade. Com isso, crimes graves acabam sem a prisão dos culpados. “A diferença é que no Brasil impera a impunidade. Na Europa, os torcedores também extrapolam os limites, mas são presos”, diz Mauricio Murad, professor de sociologia dos esportes da Universidade Salgado de Oliveira.
Um exemplo dessa impunidade foi o banimento, em 1997, das torcidas Mancha Verde (do Palmeiras) e Independente (do São Paulo), que se envolveram em brigas que deixaram mortos. No mesmo ano, os mesmos vândalos voltaram aos mesmos estádios com os mesmos símbolos e as mesmas bandeiras — apenas alteraram o nome e a razão social das torcidas. “Além da impunidade, nos países europeus não existe essa relação promíscua entre clubes e vândalos de torcidas organizadas”, acrescenta Murad.
Um exemplo dessa promiscuidade é verificado no Vasco. A direção do clube bancou 75% dos gastos da viagem da torcida Força Jovem a Joinville. Murad faz desde 1999 um levantamento de mortes em brigas de torcidas. E constata que a situação só piora: “Até 2008, a média era de 4,8 mortes por ano. Nos últimos cinco anos, subiu para dezesseis”.
Na quinta-feira passada, uma reunião no Ministério do Esporte foi pródiga em discursos e inócua em medidas concretas. Uma possibilidade em discussão é tirar pontos dos clubes cujos torcedores se envolverem em brigas. Hoje a punição ao clube se limita a fazer com que a partida se realize a uma distância de mais de 100 quilômetros de sua sede — o jogo em Joinville já era uma punição ao Atlético por uma briga anterior dos mesmos torcedores.
Na sexta 13, foi definida a punição aos clubes: o Vasco perdeu oito mandos de campo e o Atlético-PR, doze. “O clube teme mais perder 3 pontos do que 3 milhões de reais. A cobrança por 3 pontos será muito mais dura pela torcida em cima dos dirigentes. O dinheiro ele pode pedir emprestado”, disse o ministro Aldo Rebelo. A violência nos estádios é parte da violência da sociedade. Para que ambas sejam enfrentadas, são necessários os mesmos instrumentos: leis duras e seu cumprimento efetivo. Como fizeram os ingleses.
14 de dezembro de 2013
VEJA
Com reportagem de LESLIE LEITÃO e ALEXANDRE ARAGÃO
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