Um relatório da American Civil Liberties Union (www.aclu.org) chamado a A Living Death revelou que 79% dos 3.278 casos de presos em prisão perpétua, nos Estados Unidos, em 2012, estão ligados a crimes não violentos relacionados às drogas ou a crimes contra a propriedade. Estamos diante da banalização da prisão perpétua (que, no Brasil, é proibida). De outro lado, em termos preventivos, ficam cada vez mais evidentes duas falácias: a do endurecimento da pena e a do encarceramento massivo.
Segundo o relatório, esperava-se que esse tipo de pena fosse imposta apenas a criminosos cujo “dano para a sociedade” (como dizia Beccaria, Dos delitos e das penas, cap. 6) fosse de alta gravidade, entretanto, não é o que vem ocorrendo.
A violação ao princípio da proporcionalidade é patente. Alguns dos casos pelos quais muitos estão privados perpetuamente da liberdade são: posse de um cachimbo de crack; posse de uma tampa de garrafa que continha traços de heroína; ter uma pequena quantidade de cocaína em bolsos de roupas em quantidade tão pequena que era invisível a olho nu e detectado apenas em testes de laboratório; ter uma única pedra de crack em casa; posse de 32 gramas de maconha com intenção de distribuir; agir como um intermediário na venda de 10 dólares de maconha a um policial disfarçado; venda de uma única pedra de crack; negociar verbalmente a venda de duas pedras falsas de crack pertencentes a um outro homem com um oficial infiltrado; servir como intermediário na venda de 20 dólares de crack a um policial disfarçado; partilhar vários gramas de LSD; ter um estoque acima do permitido de comprimidos descongestionantes que poderiam ser base de fabricação de metanfetamina.
Em casos documentados pela ACLU, os crimes não-violentos contra a propriedade que resultaram em penas de prisão perpétua, sem liberdade condicional, incluem tentar trocar um cheque roubado; posse de um ferro-velho de lixo roubado; posse de chaves roubadas; desvio de gasolina de um caminhão; roubar ferramentas de uma casa de ferramentas e uma soldadura de máquina de um quintal; furtar três cintos de uma loja de departamento; furtos de várias câmeras digitais; furtar duas camisas de uma loja; furtar uma televisão, serra circular, e um conversor de uma casa de férias; invadir uma loja de bebidas fechada no meio da noite.
Outros crimes não violentos que resultaram em vida-sem-liberdade condicional foram: ameaça de um bêbado a um policial enquanto algemado na parte traseira de um carro de patrulha; posse de uma arma de fogo por um criminoso condenado; furtar a arma de um padrasto que abusava do enteado, de sua casa.
Negros e prisão perpétua
O estudo apontou que há uma disparidade racial entre os presos que cumprem esse tipo de sentença. Os negros são desproporcionalmente os que mais são levados às prisões. Do total de presos cumprindo penas por crimes não violentos, 65,4% deles são de cor preta, 17,8% são brancos e 15,7% são latinos.
O custo mensal de um preso, em um estado americano, como a Louisiania, por exemplo, é de 5 mil dólares. A ACLU acredita que se as sentenças fossem revisadas, pelos estados e pela federação, seriam poupados pelo menos 1,784 bilhões de dólares. De acordo com a entidade, só o governo Federal poderia economizar cerca de U$ 1,2 bilhões.
As sentenças de prisão perpétua aumentaram de 12.453 em 1992 para 49.081 em 2012. Mais de 300% de aumento. O relatório afirma que a imposição de prisões perpétuas para crimes não-violentos constitui um sintoma do ataque implacável de mais de quatro décadas de políticas na guerra contra as drogas e o “tough-on crime”, movimento que se refere ao conjunto de políticas que enfatizam a punição como resposta primária, e muitas vezes única, ao crime, com a condenação obrigatória, que levaram (desnecessariamente) a duras leis de condenação, incluindo a particular política dos três crimes (three strikes and you are out), que obrigatoriamente leva à prisão perpétua no terceiro crime cometido, independente da gravidade deles; também existem as sentenças mínimas obrigatórias, que consiste numa política gerencial (atuarial) que exige a punição por certos crimes em pelo menos um número mínimo obrigatório de anos de prisão.
As consequências dessas políticas criminais baseadas em concepções fundamentalistas (teologias políticas) do século XX, que revelam verdadeira obsessão pelo encarceramento assim como extremas e desumanas penalidades, facilitaram o resultado desastroso acima referido.
De 1930 a 1975, a taxa de encarceramento média foi de 106 pessoas por 100.000 adultos na população. Entre 1975 e 2011, a taxa de encarceramento subiu para 743 por 100.000 adultos na população – a maior taxa de encarceramento no mundo, com o total de pessoas encarceradas em todo o país superando 2,3 milhões. Houve aumento de 700% na taxa de encarceramento nos EUA, desde que foi implantada a política neopunitivista, ambientada no fundamentalismo cristão (que a partir dos anos 80 passou a dar suporte para a política econômica neoliberal).
O Brasil, que se alinhou aos EUA nessa política neopunitivista, estimulada pela criminologia populista/midiática (veja nosso livro Populismo penal midiático: Saraiva, 2013), também se converteu num dos maiores encarceradores do mundo, sendo vedadas constitucionalmente por aqui a prisão perpétua e a pena de morte.
De acordo com levantamento realizado pelo Instituto Avante Brasil, o Brasil, a partir da década de 90 experimentou a mesma explosão carcerária que ocorreu na década anterior nos Estados Unidos. Entre 1990 e 2012, o país teve um crescimento de 508%, passando de 90 mil para 548 mil nesse período. Também foi possível observar um estrondoso crescimento de 350% na taxa de encarceramento por 100 mil habitantes, passando de 61 presos para cada mil habitantes para 282 por 100 mil, em uma população de 193, 9 milhões de habitantes em 2012, de acordo com o IBGE.
Mas, assim como acontece nos Estados Unidos, nem o endurecimento das nem o aumento do encarceramento diminuiu a criminalidade (enfocada especialmente nos assassinatos). Tanto lá como aqui, mesmo após muitas políticas pesadas de punição e encarceramento em massa, a criminalidade ainda é muito alta ou continua crescendo.
Os EUA é o único dos países mais ricos com uma taxa de mortes de quase 5 para cada 100 mil habitantes, enquanto a maioria deles não chega a 1. Foi visto em países como Holanda e Suécia o fechamento de prisões pelo simples fato destas apresentarem queda significativa no número de crimes, priorizando a prevenção e o tratamento de pessoas envolvidas com questões de drogadição, ao invés de oferecerem a elas o cárcere.
Tanto os Estados Unidos, como o Brasil, deveriam se espelhar em países onde o fechamento das prisões é o foco, e não o contrário. Celas cheias não garantem necessariamente segurança à população, ao contrário da prevenção dos delitos e da reabilitação do preso. Já é tempo de perceber que o problema é estrutural e que políticas paliativas, como as leis que endurecem as penas, não resolvem. Logo que editadas há uma queda mínima, mas depois o crime volta a aumentar.
14 de dezembro de 2013
Luiz Flávio Gomes
*Colaborou: Flávia Mestriner Botelho, socióloga e pesquisadora do Instituto Avante Brasil.
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