O país dos alvarás e da propina
A burocracia infernal que emperra o Brasil, estimula a corrupção – e não evita incêndios, desabamentos, enchentes e milhares de mortes
>> Trecho da reportagem de capa de ÉPOCA desta semana:
O auditório do Memorial da América Latina não tinha alvará de funcionamento quando pegou fogo, em 29 de novembro. Nunca teve, em duas décadas de existência. Como a obra em execução era diferente do projeto aprovado pela prefeitura de São Paulo, também estava irregular a construção da Arena Corinthians, onde morreram dois operários, no dia 27. Faltavam alvarás à boate Kiss, de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, quando um incêndio em janeiro matou 242 pessoas.
A quantidade de construções sem alvará envolvidas em tragédias recentes pode passar a impressão de que esses documentos funcionem como atestado de segurança. Infelizmente, é só uma impressão. Em vez de “tragédias”, use outro critério para filtrar o universo de edificações do país. Por exemplo, “estádios da Copa do Mundo”.
A falta de alvará também será frequente. “Há uma década, pesquisamos cinco cidades do Rio de Janeiro. Sete em cada dez construções não tinham alvará”, afirma o advogado João Geraldo Piquet Carneiro, ministro da Desburocratização no governo João Figueiredo e presidente do Instituto Helio Beltrão, ONG dedicada a estudar a burocracia no país.
“Um imóvel com alvará pode ser inseguro e um imóvel sem alvará pode funcionar normalmente.”
O alvará é então apenas um pedaço de papel? A julgar pelo comportamento das autoridades, alvará é isso mesmo – apenas um pedaço de papel. Não tem utilidade prática. A prefeitura de São Paulo nunca concedeu alvará de funcionamento ao auditório do Memorial da América Latina. Paradoxalmente, só neste ano, usou três vezes aquele espaço para eventos.
O Maracanã, no Rio de Janeiro, estádio reformado para a Copa do Mundo de 2014, funciona amparado por um alvará provisório, válido até 11 de abril de 2014. Teoricamente, poderá perder a autorização para funcionar um mês antes da Copa. Mas ninguém se preocupa com isso.
Situação semelhante ocorre no Mané Garrincha. O estádio de Brasília não tem o “habite-se”, certidão de que a obra seguiu o projeto aprovado, exigida para a concessão do alvará de funcionamento. Tal detalhe não impediu a partida inaugural da Copa das Confederações, em junho, com a presidente Dilma Rousseff na tribuna. Amparado por autorizações provisórias, o Mané Garrincha já recebeu 17 eventos, como o jogo entre Santos e Flamengo, com 63.501 espectadores.
Deverá receber sete partidas da Copa do Mundo. Em nota, o governo do Distrito Federal afirma que a emissão do alvará de funcionamento exige o cumprimento de “extenso rol de exigências técnicas, que inclui, por exemplo, a análise de cerca de 2 mil plantas do projeto da arena”.
“A emissão posterior do alvará definitivo não impede, de forma alguma, o uso seguro e de acordo com a legislação”, diz a nota.
A afirmação do governo é tão verdadeira quanto desconcertante. Se o alvará fosse levado a sério como atestado de conformidade com as leis, nenhum evento deveria ocorrer até sua concessão. Mas o estádio funciona mesmo assim, porque o alvará, na verdade, é uma mera formalidade.
Em Brasília, os prédios da Esplanada dos Ministérios, da Câmara dos Deputados e do Senado, pertencentes à União, também não têm alvará. É a mesma situação, em São Paulo, da Pinacoteca do Estado, administrada pelo governo estadual, e do Museu de Arte de São Paulo (Masp), ponto turístico mais procurado da cidade.
14 de dezembro de 2013
MARCELO MOURA, COM ANA LUIZA CARDOSO, FELIPE PONTES, GRAZIELE OLIVEIRA, LEOPOLDO MATEUS E MARCOS CORONATO - Epoca
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