Intervenção no 2o seminário
“Ética para o juiz. Um olhar externo“ ocorrido na manhã de hoje na Escola Paulista da Magistratura
Antes de começar é melhor preveni-los sobre como ouvir o que tenho para dizer.
A minha trajetória pelo jornalismo se deu por aquela vertente que Raymond Aron definia como a de um “espectador engajado”.
Buscar a verdade com todo o empenho e a mais firme disposição de desconfiar de toda resposta fácil demais que subir à minha cabeça?
Ok. Isso é inegociável.
Mas fingir “neutralidade”, como está na moda hoje nas nossas escolas de jornalismo pra mim é só uma forma dissimulada de falta de isenção. Embaça muito mais do que esclarece.
A chave para filtrar o que eu digo, portanto, é a seguinte:
A historia da construção da democracia tem sido o objeto do estudo de toda a minha vida. Desse esforço eu conclui que, entre todas as outras vertentes experimentadas pela humanidade, a democracia é o estágio moral e eticamente mais elevado que é possível alcançar na organização das relações humanas.
Democracia é o que eu quero para o meu país. Democracia é o que eu quero para os meus filhos. Portanto, a angulação do meu olhar para os acontecimentos do presente e toda a minha própria orientação ética está referida à contribuição que eu desejo dar para a construção da democracia no Brasil.
***
A ética relacionada a uma profissão é, sempre, um corolário da função. E a função se define ao longo da História. É uma cultura. E cultura é o que determina tudo que nós fazemos sem que tenhamos plena consciência disso.
Nesse sentido, uma cultura é quase um destino; uma fatalidade.
Mas o homem é o único animal capaz de mudar o seu próprio destino. E uma das maneiras de conseguir isso é com o recurso à psicanálise.
Eu gosto de dizer sempre que a História é a psicanálise das sociedades. Tanto individual quanto coletivamente nós só conquistamos a condição de alterar o nosso destino depois de entender claramente como foi que nos transformamos naquilo que somos.
A primeira coisa que constatei nesse meu mergulho na história da construção da democracia é que a estruturação de um determinado ordenamento jurídico é sempre o elemento fundador desse processo.
É isto que me amarra a vocês. Jornalistas, juristas e democracias não podem viver uns sem os outros…
A segunda coisa que aprendi nestes 40 anos de observação direta e mais 140 anos de cultura familiar/profissional acumulada é que no campo das criações humanas não existem verdades absolutas nem fundamentos “científicos” imutáveis.
Não ha nada que esteja para as ciências humanas como a matemática, a geometria e as leis da física estão para as ciências exatas.
A gente trabalha para organizar as sociedades assim ou assado para um propósito. E tudo que nós temos para tentar atingir esse propósito são convenções apoiadas no máximo em hipóteses informadas.
A única medida possível da qualidade desses instrumentos, portanto, é o uso. O teste real da sua eficácia para a produção dos efeitos a que se propõem.
É por isso que o estudo das chamadas ciências sociais só traz proveitos concretos se for feito em bases comparativas.
Só se pode andar para a frente, do ponto de vista institucional, medindo os resultados que cada sistema produz – os bons e os ruins – e relacionando esses resultados ao tipo de arranjo que os gerou.
Para esse efeito viver nesta nossa ilha cercada de língua portuguesa por todos os lados é um forte handicap negativo.
É impossível aprender democracia em português. Pelo simples fato de que nenhum povo que fala essa língua jamais experimentou uma.
Mas a língua não é o único obstáculo e nem, talvez, o principal. Os campeões desse tipo de estudo comparativo têm sido os franceses. Mas nem por isso eles são tão evoluídos assim do ponto de vista institucional.
Existem pelo menos mais duas barreiras importantes atrapalhando esse tipo de aprendizado.
A primeira decorre da lei universal do menor esforço que pode ser traduzida mais ou menos assim: o bicho homem vai viver da exploração do próximo sempre que isto lhe for permitido, e vai lutar com unhas e dentes antes de concordar em trocar essa condição pelo esforço pessoal e pelo mérito.
A segunda, não menos formidável que a primeira, é a barreira do orgulho que, em geral, se apoia na ignorância.
O surgimento de um francês intelectualmente humilde é um dos eventos mais raros da natureza. Mas de vez em quando acontece.
Três deles se destacaram nos estudos comparativos das duas grandes linhas de construção de instituições da era moderna: Voltaire, com as suas Cartas de Inglaterra, Tocqueville, com A Democracia na América, e o menos conhecido mas talvez o mais importante deles, especialmente para esta plateia, Henri Levy-Ullman, com o seu Le Systéme Juridique de l’Angleterre.
Depois deles é impossível dizer qualquer coisa de novo a respeito da alternativa entre as duas linhas básicas de arquitetura institucional que, apesar das variações de grau e de estilo, segue até hoje sendo a única à disposição da humanidade.
O que me resta, portanto, é só repassar os pontos principais.
Vamos a eles.
O Poder Judiciário nasce para atender a necessidade das sociedades humanas de dispor de um método pacífico de resolver controvérsias.
Historicamente falando, só existem duas maneiras de fazer isso:
- pedindo proteção a um poder estabelecido capaz de se impor pela força em troca de vassalagem ou
- atrelando o senso inato de justiça do homem, depurado pela prática da sua aplicação ao longo do tempo, à reconstituição da verdade dos fatos segundo regras precisas de aferição do equilíbrio entre as versões em conflito de modo a, no final, atribuir a cada um aquilo que deve ser de cada um.
O turning point que bifurcou o mundo ocidental – e atrás dele o resto da humanidade – nas sendas do autoritarismo ou da democracia é Bolonha: o momento em que a Europa Continental é forçada a se desligar do esforço, até então comum a toda a comunidade europeia, de interrogar a natureza e a História para estruturar, de baixo para cima, um ordenamento jurídico baseado na tradição para atender à necessidade de proteger o mais fraco do mais forte e os súditos dos reis e dos barões.
É a partir de Bolonha que esses europeus são constrangidos a regredir, pela força das armas dos que sabiam que seus privilégios não sobreviveriam à nova ordem que se ia esboçando em função dessa busca, para um ordenamento jurídico estruturado em cima de uma falsificação do Direito Romano especialmente desenhada para restabelecer a situação anterior e perpetuá-los no poder.
Naquela altura, só houve uma exceção.
O meu herói predileto chama-se Edward Coke. Ele era o juiz supremo da Inglaterra quando o primeiro Stuart subiu ao trono. Em 1605, cara a cara com James I que reivindicava os mesmos poderes absolutos dos seus pares do continente, ele declara o rei “under god and under the law”.
O “under the law” significa, literalmente, que sua majestade é “igual a todos nós” em direitos e em deveres. E, portanto, daí para baixo, todo mundo.
O “under god” significa, literalmente, que também o rei está submetido à verdade dos fatos e não tem mais a prerrogativa de troce-los como melhor lhe convier.
As repercussões desse ato de coragem foram muito maiores do que qualquer coisa com que Coke pudesse ter sonhado.
Enviado o sinal para a sociedade de que fazia sentido resistir, o Parlamento tomou a bandeira que o Judiciário lhe passou e o resto é história.
Com o menor preço em sangue jamais pago por qualquer comunidade humana por mudanças tão profundas nas relações de poder o povo da Inglaterra, antes do ultimo quartil daquele século, já tinha, sobre o seu próprio destino, as mesmas condições de controle que continua tendo até hoje.
Mas não foi só isso.
Ao tirar o pressuposto da frente do fato e o dogma da frente da experimentação, Coke não estava apenas cravando no chão a primeira baliza sólida a partir da qual a democracia pôde iniciar a sua terceira tentativa de caminhar sobre a Terra.
Ele estava abrindo o caminho para o surgimento da ciência moderna.
A semente plantada por ele, fertilizada pela visão newtoniana da ordem cósmica, evoluiu para o sistema de pesos e contrapesos que os iluministas americanos costuraram com toda a minúcia para não deixar nas mãos de ninguém poder demais e para fazer o funcionamento do sistema depender de todos e de cada um dos cidadãos.
Foi o momento mais brilhante da humanidade.
Desde então a democracia e a inovação, que é o único antídoto seguro contra a doença política da miséria, andam juntas.
Uma depende da outra.
Mas, e nós?
Nós … não estávamos lá. Nós somos filhos da outra corrente.
O direito português é a última cópia das cópias da falsificação de Bolonha. E o direito brasileiro é o filho temporão do direito português.
Desde então tem havido tentativas de correção de rumo. Mas é sempre remar contra a corrente. Passados quase 800 anos desde Bolonha cá estamos nós, mais uma vez, sob a ameaça real de ficarmos reduzidos a um único poder absoluto que usa a corrupção como uma arma de conquista.
O Legislativo corre o sério risco de se afogar na lama.
No Poder Judiciário o panorama também não é animador.
Nós temos 5 justiças e nenhuma definição clara de competências, embora vivamos todos sob uma única salada de leis.
Os juízes e os funcionários do Judiciário são nomeados pelos donos do poder que eles têm por função cercear.
Eu gastaria mais que a meia hora de que disponho somente para enumerar quem julga quem em quais circunstâncias, dentro dos 4 poderes (estou incluindo a imprensa), tantos são os “foros especiais”.
Daí para baixo, na escala social, sempre segundo o poder de cada corporação de afetar a vida alheia, todos e cada um têm tantos “direitos especiais” que é difícil saber se há mais brasileiros hoje sob regimes de exceção ou submetidos à regra geral.
E isso lembrando que os conceitos de “direito” e de “especial” são mutuamente excludentes num contexto democrático.
Para desfrutar do poder de distribuir e garantir tais benesses; para se apropriar desse “toque de Midas”; pode-se entrar no Judiciário pela porta da frente, pela porta dos fundos ou até semiclandestinamente, pelas janelas do chamado Quinto Constitucional.
Uma vez lá dentro, são dois anos e o sujeito sabe que ninguém mais tira ele de lá.
Removida do horizonte a ameaça da sanção contra a falta de merecimento pelo empenho que é o que move o mundo aqui fora, o resto é consequência.
Daí pra frente o que vale para a progressão na carreira jurídica, como nas demais carreiras públicas, são as relações de cumplicidade. O sangue fresco que entra no sistema fica obrigado a se comprometer com o sangue contaminado para subir hierarquia acima.
O processo judicial deixou de ser um meio para se transformar num fim em si. Mais de 70% dos que correm nestas terras não têm uma solução de mérito.
São tantos os furos na peneira dos recursos que o processo só termina se e quando o próprio condenado se declarar de acordo com a sua condenação.
Ou seja, não termina nunca.
Qualquer querela que bata numa corte – e tudo, neste país, tem de passar obrigatoriamente por elas – levará mais tempo, em geral para não ser resolvida, do que a última Guerra Mundial.
E por aí vai o nosso labirinto.
O resultado é que nós não somos mais um povo. É impossível criar laços de solidariedade até dentro de cada classe social. Nós somos uma multidão de grupinhos que vagam numa penumbra onde é difícil discernir qualquer limite do que quer que seja, cada um aferrado “ao seu”, sendo este “seu” garantido, à custa do próximo, por um padrinho que morde a melhor parte a cada vez que repete o truque de tirar alguma coisa que ele não produziu do bolso de alguém para depositá-la no bolso de outrém.
Vamos falar de ética?
Mas é possível discutir ética dentro de um sistema tão torto? Dá pra transitar dentro dele em linha reta?
Há muitos que tentam. Mas é uma luta perdida…
Portanto, senhores, a charada que, ou nós deciframos já, ou nos devora a todos é:
“Como reconstruir essa máquina em pleno voo, sem que o avião caia”?
O desafio é bravo!
Mas eu afirmo que isso é possível desde que a gente decida de que lado quer ficar.
Apesar de todas as travas e tortuosidades do sistema ele ainda está assentado no consentimento.
Se um número suficiente de nós não consentir mais isso não continua. E então os caminhos começam a se abrir como que por encanto.
Mas para que o processo se inicie é preciso uma sinalização forte. E esta sinalização tem de sair daqui.
Junho, filho das condenações do Mensalão, foi um ensaio dessa verdade que chegou a colocar o Sistema em pânico.
Foi o suficiente para provar que ele não é indestrutível. Mas depois foi o que foi…
Para que essa possibilidade volte a existir é preciso, antes de mais nada, que nós paremos de pensar no ritmo do nosso tempo vital e comecemos a pensar no ritmo do tempo histórico.
É só pensarmos menos em nós mesmos e mais nos nossos filhos que as respostas certas começam a se insinuar.
Esse mesmo tipo de exercício projetado numa distância um pouco maior vai lhe dizer que você, afinal de contas, não está preso a essa herança negativa por compromisso nenhum que você mesmo tenha assumido; você é só mais uma vítima dela.
Mas, e daí? Quais são as medidas práticas? Os passos concretos possíveis?
Tem vários jeitos de abordar esse problema.
As culturas asiáticas, por exemplo, vêm agindo darwinianamente. Como é de sobrevivência que se trata, elas seguem sem pestanejar pelo caminho mais curto e mais eficiente.
Seja quem for que o tenha descoberto primeiro eles partem retos para a cópia melhorada; para as instituições híbridas do produto nacional com o produto estrangeiro cuidando de selecionar as características positivas de cada um a serem preservadas.
E têm colhido resultados fulgurantes com isso!
Já nós, latinos, somos mais complicados. Os católicos mais que os outros.
“Nós vivemos confortavelmente demais dentro da mentira”, dizia Octavio Paz.
Um bom expediente, portanto, seria começar por um esforço de limpeza do entulho retórico com que insistimos em soterrar as verdades que já não adianta esconder porque todo mundo conhece, e passar a chamar as coisas pelos nomes certos.
“Justiça garantista”? “Ideologias”? “ismos”?
Façam-me o favor, senhores juristas, senhores jornalistas! Sigam o dinheiro que as palavras certas vão colar por si mesmas nos fatos certos para produzir descrições honestas do que é que realmente nos aflige.
Parece nada mas é um exercício de condicionamento psicológico que tem um efeito muito mais poderoso para desencadear reformas do que parece à primeira vista.
Depois é só ir trabalhando os vetores básicos dos vícios do sistema para que as coisas comecem a se arrumar.
Eu sei que não existem panaceias e nem ha sistemas perfeitos no mundo. Mas o mundo está andando rápido demais e nós ainda estamos tão longe do “ruim” dos melhores que é suicídio deixar como está.
É preciso inverter as cadeias de cumplicidade; mudar os sistemas de nomeação; substituir nomeações por eleições de funcionários públicos; limpar o sangue do sistema do veneno da estabilidade no emprego a qualquer preço; atrelar as carreiras públicas ao mérito…
Aqui fora tudo já funciona assim. Mas como forçar quem manda lá dentro a fazer o mesmo?
Instituir o voto distrital com recall que arma a mão do eleitor e muda a iniciativa da pauta política e legislativa da Nação das mãos de quem não quer para as de quem necessita desesperadamente de reformas seria um excelente começo.
A bola que esse instrumento põe em movimento não para nunca mais de rolar. E sempre na direção que a gente quer. Os exemplos concretos estão aí para serem conferidos.
Enfim, senhores: o que tem faltado não são remédios, é a vontade de toma-los.
O consolo é que, enquanto ela permanecer aberta dependendo do voto, por mais capenga que ela seja a política funciona assim:
SE A GENTE ACREDITAR A GENTE VENCE!
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