Assim falava Zaratustra:
«Tranqüilo é o fundo do mar. Quem adivinharia que oculta monstros divertidos! A minha profundidade é inabalável, mas radiante de enigmas e gargalhadas».
Esta e outras verdades, por vezes pronunciadas com pernosticismo de cabala e de profecia, põe Nietzche na boca do seu super-homem, que no fundo era ele mesmo: ele mesmo que nos seus espasmos de loucura vagava alucinado pelas florestas da Turíngia.
Foram frequentes as vezes que voltei à leitura dessas frases, e de cada vez, mais maduro que nas anteriores, fui descobrindo que o super-homem daquele alucinado não é mais do que resultado da vigília constante do homem comum.
Talvez os outros loucos não compreendam se me deixo vencei pela tentação de afirmar que o «homem sublime» nietzscheano saiu da vulgaridade porque descobriu o tremendo perigo que é a vida, e transformou o próprio medo na impostura de uma forma de glória.
Levou-me a esse comentário o uso imoderado da navalha de barbeiro, segundo se lê em telegrama de Niterói, Estado do Rio. Lá o barbeiro Albino Sá Benavides, ao intervir em uma discussão entre fregueses, anavalhou com seu instrumento profissional três homens que esperavam a vez de cortar a barba: João Batista Machado foi cortado no rosto e no braço direito; Alfredo Cunha ganhou um corte no pescoço e José de Sousa recebeu um ferimento e coxa direita. Tranqüilo é o fundo do mar. Quem adivinharia que oculta monstros divertidos!
Tenho sido muito criticado na intimidade dos amigos pela fato de que, sentindo que a vida é extremamente perigosa. vivo a contorcer-me da expectativa do pior. Na realidade. quando deitamos a cabeça para trás, na cadeira do barbeiro, para que ele escanhoe a nossa pele nas proximidades do pomo de Adão, corremos o risco do degolamento: acho que não sentimos arrepio desse risco porque somos embalados por uma boa fé sem limites. Nunca pedimos ao barbeiro que nos exiba um atestado médico positivo a respeito de sua sanidade mental.
Quando embarcamos em um avião, partimos do pressuposto de que o piloto, que até ali manteve a conduta dentro da normalidade, não foi atacado durante a noite pelo demônio da insânia. Nada nos garante que a própria caneta esferográfica, que o pacífico amigo empunha na nossa frente, para assinar o documento que lhe apresentamos, não vai ser usada para o ato de furar nosso olho esquerdo.
Quando mandamos as crianças para o colégio, simplesmente confiamos em que a professora ainda não foi atacada de paranóia persecutória, e não vai estrangular o seu pequeno aluno. Se damos de presente um punhal ao amigo, fazemo-lo certos de que ele não nos vai apunhalar. Nada nos garante que o barbeiro, o piloto do avião, o amigo que assina, a professora e o companheiro que recebeu o punhal não foram, ou já não estavam, tangidos pela especial transfiguração da vontade que pode fazer do homem, de repente, o monstro das profundidades desse mar de coexistência em cuja superfície navegamos.
Se os barbeiros conhecidos de repente põem na cabeça a idéia de usar suas navalhas para fins diferentes dos que lhes são assinados; se as pessoas com quem convivemos podem, repentinamente, implicar com o nosso olho direito ou com a inerme confiança do nosso sorriso; se o piloto do avião em que viajamos bem que pode ter a ocorrência de fumar maconha durante o vôo, não há motivo algum para que sejamos confiantes. A estabilidade deste mundo é problemática, e é por isso que a vida é uma grande aventura que só enfrentamos porque a ingenuidade incurável dos nossos corações faz da existência um permanente ato de fé.
Só os loucos duvidam, só os loucos sabem do tremendo risco de estarmos vivos. Os loucos e os pessimistas que esperam, como eu, tudo de todos, a qualquer momento. Assim falava Zaratustra: «Olha: é esta a toca da tarântula. Queres vê-la, a ela mesma? Está aqui a sua teia; toca-a para a veres tremer!»
PS – Ney Messias, dublê de jurista e jornalista, foi um dos mais geniais poetas gaúchos. Estas crônicas e outras mais, por mim compiladas e editadas postumamente, podem ser encontradas em O Construtor de Mistérios, 1975, nos bons sebos da praça.
25 de setembro de 2013
janer cristaldo
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