“Então, aconteceu o improvável: Lênio Streck errou. Ele deu uma opinião de orelhada, sem conhecer os autos, apenas com base nos andamentos processuais consultados pela internet: nada mais que uma sequência temporal de atos retratada na tela, sem nada do conteúdo do processo.”
Mais ou menos desde o Mensalão e as primeiras condenações e prisões de petistas de alto coturno surgiu nas “interwebs” o fenômeno, hoje amplamente disseminado e de todos conhecido, do “não sou petista, mas…”. Se trata da frase que geralmente abre contundentes defesas do partido e, no passado não tão distante, geralmente era seguida de duras críticas ao ex-ministro do STF Joaquim Barbosa, que havia acabado de condenar José Dirceu à cadeia. Os presos mudaram – já há quase um ministério inteiro encarcerado – mas a defesa enviesada do partido, seguindo basicamente a mesma receita, permanece.
Entre artistas já é um clichê: do mais neandertalesco cantor de rock à mais engajada “atriz-ativista-pró-aborto-legalização”, todos se saem com o bom e velho “não sou petista, mas…” e, hoje, dirigem suas baterias retóricas contra o juiz Sérgio Moro e os procuradores da operação Lava Jato (para, no fim, declarar “voto crítico” no PSOL). Nem mesmo a substituir as teorias conspiratórias de que o impeachment serviria para “acabar” com a operação – a qual, como se vê, continua a pleno vapor – o pessoal se prestou. Foi preciso procurar novos “argumentos”. E quando atrizes, “youtubers” e outras personalidades do entretenimento falham, talvez seja a hora de outros profissionais entrarem em cena.
Em meu primeiro ano na faculdade houve um evento em que Lênio Streck participaria, ao lado de outros nomes do chamado “direito alternativo” – até então, algo que eu não compreendia muito bem, mas que parecia ser uma proposta radical de contornar os “obstáculos” do “legalismo” para fazer “justiça de verdade”. Me inscrevi – era o primeiro evento de palestras e discussões ao qual eu compareceria – e, durante aqueles dias, fiquei impressionadíssimo com o que vi e ouvi. A outra estrela do evento era o magistrado Amilton Bueno de Carvalho, defensor de propostas abolicionistas radicais, para quem o direito penal “não serve para nada”. Para um calouro, inexperiente e impressionável, aquilo causava um grande impacto: essas pessoas pareciam “acima” do rame-rame diário da legislação escrita, dos deputados e senadores corruptos que aprovavam leis em benefício próprio e apenas para prejudicar os pobres, do tecnicismo e dos carimbos que tornam o direito uma rotina entediante: eram verdadeiros Robin Hoods da vida real, usando suas togas e becas como capas de super-heróis, prontos a subverter o sistema para salvar os fracos e oprimidos.
Lembro da expressão “positivismo de combate”; lembro do juiz Amilton dizendo que, quase sempre, indeferia pedidos de prisão feitos a ele pois “prisão de nada adianta”, ou alguma outra máxima abolicionista. Mas, confesso, não consigo lembrar bem do que disse Lênio Streck. De tudo ficou uma impressão de que ele era um pouco menos “porra-louca” que Amilton Bueno de Carvalho, mas posso estar errado – lá se vão quinze anos. O fato é que o tempo passou, esqueci do “direito alternativo” e de seus defensores, e, há pouco tempo, por uma razão do acaso, voltei a ler os artigos de Lênio Streck – e confesso que fiquei surpreso. Ele cita com desenvoltura todos os autores que tento arrumar tempo para ler e nem de longe defende as mesmas idéias que, pelo que eu mal consigo lembrar, defendia naquela palestra no Teatro Guaíra. Aliás, quando comentei com um colega de faculdade que eu havia gostado da palestra, lembro de ele me advertir: “esse aí é um comuna”.
Mas não é a impressão que eu tive lendo os artigos dele no Consultor Jurídico, falando sobre o novo Código de Processo Civil e a criação de um “sistema de precedentes” no Brasil – esses textos me pareciam lúcidos, bem informados, cheios de referências e de um invejável repertório – tão vasto que, um dia, a coluna era a simulação de um jantar a que “compareceram” os maiores juristas de todo o mundo e de todos os tempos, falando pela boca de Lênio Streck, que conhece tão intimamente o pensamento deles que era capaz de, à perfeição, cunhar frases que eles diriam e pensamentos que eles teriam. Mas não haveria de demorar – como a Operação Lava-Jato polarizou tudo no Brasil, logo Streck entraria na dança, e com resultados decepcionantes.
Primeiro, numa desorganizada diatribe sobre os efeitos maléficos da influência da moral sobre o direito, o jurista desmereceu o trabalho da operação Lava Jato – especialmente dos integrantes do Ministério Público Federal – por conta de inadmissível “adjetivação” feita ao longo da entrevista coletiva em que se explicou os fundamentos da denúncia apresentada contra o ex-presidente Lula. Lênio começou a sentir o carinho da torcida: em sua página no Facebook, normalmente frequentada por admiradores que quase sempre apenas o elogiam, passaram a pipocar críticas eventuais. Outros textos sobre temas mais propriamente “jurídicos” vieram, até que, há alguns dias, Streck, de maneira totalmente atabalhoada, resolveu consultar o andamento processual de uma ação penal presidida pelo juiz Sérgio Moro no âmbito da ação Lava Jato e cravou:
“Sentença proferida por Sérgio Moro no caso Bumlay: Alegações finais da defesa entraram dia 14. Conclusão ao juiz as 7h52min do dia 15. Sentença de 160 páginas dois minutos depois, as 7h54min. Bingo! Será necessário dizer algo? Há anos aviso que o solipsismo judicial acabaria com o direito. E a dogmática jurídica tradicional foi conivente. Quem esteve no Ibcrim do ano passado e assistiu minha palestra sabe do que estou falando! O Estado Democrático de Direito está em risco. Exceção em cima de exceção. Tudo em nome de argumentos finalisticos. A moral predou o direito. E com apoio de grande parte da comunidade jurídica. Os juristas estão canabalizando o direito! Isso não vai terminar bem!”
Embora confusa, a nota parece querer insinuar que a sentença já estaria pronta e teria sido formulada sem que, antes, Sérgio Moro lesse todos os argumentos da defesa feitos em alegações finais – o que significaria que “o Estado Democrático de Direito está em risco”, como diria, também, o recém-convertido Reinaldo Azevedo. De qualquer forma, pouco tempo passou até que Sérgio Moro respondesse à acusação de Streck, de estar praticando “exceção em cima de exceção”, e o magistrado esclareceu: as alegações finais já tinham sido apresentadas há muito tempo; a abertura de prazo imediatamente anterior à prolação da sentença era apenas para complementação das razões, em vista da juntada de documento novo. Os réus, então, “apenas ratificaram suas alegações”, ou seja, se manifestaram apenas reiterando o que já haviam dito muito antes da sentença ser lançada nos autos.
Então, aconteceu o improvável: Lênio Streck errou. Ele deu uma opinião de orelhada, sem conhecer os autos, apenas com base nos andamentos processuais consultados pela internet: nada mais que uma sequência temporal de atos retratada na tela, sem nada do conteúdo do processo. Em outras palavras, Streck fez exatamente aquilo que acusou Moro de estar fazendo: se precipitou. Tirou uma conclusão sem saber, antes, dos fatos. E Moro demonstrou, justamente, que não fez isso – o que deve ter sido horrível para Streck, dado que, como os fatos subsequentes viriam a demonstrar, humildade não é um de seus pontos fortes.
Na postagem seguinte, Streck aumentou o tom da crítica, e acusou Moro de não ser o prolator da decisão – mas sua assessoria – já que ele teria viajado no dia em que a sentença foi juntada ao processo. Ele prossegue dizendo que, no fundo, pouco importa, e passa a criticar o processo eletrônico, insistindo que Moro não teria “lido os argumentos” da defesa. Tudo isso, segundo ele, teria acontecido porque “não me ouviram”. Mas, a essa altura, já estava tudo explicado: a sentença vinha sendo preparada há mais de um mês.
Mas, para Streck, o esclarecimento é irrelevante. O jurista insistiu na crítica, dizendo que pouco importava a explicação dada por Sergio Moro: ele continuava errado e, ele, Streck, certo. O carinho da torcida cresceu, as críticas se acentuaram, e veio a postagem em que ele “encerrou o debate”: perdendo a chance de admitir que se precipitou, ele insistiu mais uma vez que “uma decisão de 160 laudas não pode ser colocada como pronta horas depois das últimas alegações”, porque “no mínimo, não pega bem”. E assim ele “encerrou a questão”: pegou a bola, costurada com o que há de melhor na filosofia jurídica, e deixou o campinho. Afinal, ele não é obrigado.
A sensação deixada é uma só: a de que pouco importam os fatos; mesmo tendo sido esclarecidos, o jurista não se curvou à realidade, e preferiu continuar formulando sua crítica tal como o vovô Simpson gritando contra as nuvens. Pior: fica a impressão de que criticar quem está mandando prender os mandarins do petismo é uma missão mais importante que a honestidade intelectual – que passa pela admissão dos próprios equívocos e a correção do que se diz toda vez que a fala não estiver integralmente informada pelos fatos. Numa situação dessas, é inescapável: quem se comporta assim não poderá se queixar de ser chamado de “petista”. Não tem conjunção que resolva.
02 de outubro de 2016
Thiago Pacheco é advogado, pós graduado em Processo Civil e formado em jornalismo.
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