Candidato republicano elege globalização como bode expiatório
No auge da Guerra Fria, Ronald Regan buscou carregar o confronto bipolar de pesada coloração moral.
Em discurso a uma associação de evangélicos em 1983, referiu-se ao comunismo como “o foco do mal no mundo moderno”. A União Soviética tratava-se, portanto, do “império do mal”.
A frase aumentou o caráter “para além da geopolítica” da disputa Leste-Oeste. E ajudou a convencer sociedade e establishment político nos EUA da necessidade de aumentar recursos militares e diplomáticos para derrubar o regime de Moscou.
O quanto os EUA “ganharam” a Guerra Fria ou, na realidade, foi a URSS que a “perdeu” é questão em aberto e amplamente discutida pelos historiadores.
Numa interpretação mais economicista do fim da confrontação bipolar, o senador democrata Paul Tsongas, de Massachusetts, que disputou a nomeação de seu partido à Casa Branca em 1992, ofereceu sugestão diferente: “a Guerra Fria acabou, e o vencedor foi o Japão”.
Como é notório nestas eleições presidenciais nos EUA, o candidato republicano Donald Trump não entende que o Kremlin é a fonte do mal no mundo contemporâneo. Não haverá uma retomada da Guerra Fria com Moscou. Bem ao contrário, o bilionário norte-americano e Vladimir Putin trocam amabilidades publicamente.
Ainda assim, Trump e seus apoiadores gostam de fazer pensar que ele é uma reedição de Reagan. Adesivos, bandeiras, anúncios de televisão que circulam nos EUA buscam associar a imagem do atual candidato republicano à memória –positiva para os EUA– da presidência Reagan.
Apoiadores de Trump nos EUA gostam de salientar semelhanças entre Trump e Reagan. Ambos, em respectivos contextos históricos, podem ser considerados “outsiders” e desprezados pela intelligentsia e pelo establishment tradicional da política norte-americana.
Aliás, tal associação se fez também em outras partes do mundo. Nigel Farage, deputado britânico que protagonizou a campanha do “brexit”, disse há pouco que Trump é “o novo Ronald Reagan”.
A realidade é que, à parte da destreza com que se relaciona com a mídia televisiva, há muito pouco de Reagan em Trump.
Reagan era um vigoroso defensor de uma presença global para os EUA. Trump é um isolacionista. Reagan, um forte arauto do livre comércio; Trump, um protecionista.
Reagan foi por duas vezes governador da Califórnia; Trump nunca exerceu cargo público ou eletivo.
Reagan cercava-se de assessores de alto calibre em política externa e macroeconômica; Trump praticamente não tem conselheiros nessas duas áreas de vital importância para os EUA e para o mundo.
Há, no entanto, um inegável ponto de semelhança entre Reagan e Trump. A predileção pelo jogo de opostos simples. Bom/mau. Certo/errado. Inocente/culpado.
Desaparecem empregos americanos no setor automobilístico? O problema é o Japão. Somem do território norte-americano as linhas de produção de eletrodomésticos? Culpa do México. Suposta decadência do setor manufatureiro nos EUA? Isso se deve à China e suas práticas desleais de manipulação cambial para inundar o mundo com seus produtos.
Trump tem dificuldades em enxergar os imensos benefícios geopolíticos –e econômicos– da combinação entre estratégia comercial e objetivos de política externa que uma maior interdependência econômica trouxe aos EUA no pós-Segunda Guerra.
O Japão, há um tempo inimigo, é hoje aliado estratégico e superlativa fonte de poupança externa. México –e EUA– ganharam muito com o NAFTA (Acordo de Livre Comércio da América do Norte) num mundo que, no início dos 1990, reconfigurava-se em torno da ideia de blocos econômicos.
A China das últimas quatro décadas é o maior milagre da história econômica mundial. As concessões especiais que Washington ofereceu ao comércio com Pequim desde o fim dos anos setenta ajudaram a quebrar a espinha dorsal do comunismo como força geopolítica.
Novas geometrias de comércio e investimento, como o TPP (sigla em inglês para Parceria Transpacífico), não terão vez numa presidência Trump.
E a imposição de barreiras unilaterais ao comércio com parceiros como Japão, México e China não apenas conduziria o mundo a uma guerra comercial, mas também faria despencar o valor em bolsa das multinacionais norte-americanas. Do dia para a noite, sua estrutura de custos se desmantelaria, e assim sua lucratividade seria jogada morro abaixo.
O atual candidato republicano elegeu seu “império do mal” –e o nome dele é comércio internacional.
Trump eleito, a economia mundial pagará o preço do equívoco demagógico na força da sabedoria de H.L. Mencken: “para cada problema humano há uma solução clara, plausível – e errada”.
02 de outubro de 2016
Marcos Troyjo
in Augusto Nunes, Veja
No auge da Guerra Fria, Ronald Regan buscou carregar o confronto bipolar de pesada coloração moral.
Em discurso a uma associação de evangélicos em 1983, referiu-se ao comunismo como “o foco do mal no mundo moderno”. A União Soviética tratava-se, portanto, do “império do mal”.
A frase aumentou o caráter “para além da geopolítica” da disputa Leste-Oeste. E ajudou a convencer sociedade e establishment político nos EUA da necessidade de aumentar recursos militares e diplomáticos para derrubar o regime de Moscou.
O quanto os EUA “ganharam” a Guerra Fria ou, na realidade, foi a URSS que a “perdeu” é questão em aberto e amplamente discutida pelos historiadores.
Numa interpretação mais economicista do fim da confrontação bipolar, o senador democrata Paul Tsongas, de Massachusetts, que disputou a nomeação de seu partido à Casa Branca em 1992, ofereceu sugestão diferente: “a Guerra Fria acabou, e o vencedor foi o Japão”.
Como é notório nestas eleições presidenciais nos EUA, o candidato republicano Donald Trump não entende que o Kremlin é a fonte do mal no mundo contemporâneo. Não haverá uma retomada da Guerra Fria com Moscou. Bem ao contrário, o bilionário norte-americano e Vladimir Putin trocam amabilidades publicamente.
Ainda assim, Trump e seus apoiadores gostam de fazer pensar que ele é uma reedição de Reagan. Adesivos, bandeiras, anúncios de televisão que circulam nos EUA buscam associar a imagem do atual candidato republicano à memória –positiva para os EUA– da presidência Reagan.
Apoiadores de Trump nos EUA gostam de salientar semelhanças entre Trump e Reagan. Ambos, em respectivos contextos históricos, podem ser considerados “outsiders” e desprezados pela intelligentsia e pelo establishment tradicional da política norte-americana.
Aliás, tal associação se fez também em outras partes do mundo. Nigel Farage, deputado britânico que protagonizou a campanha do “brexit”, disse há pouco que Trump é “o novo Ronald Reagan”.
A realidade é que, à parte da destreza com que se relaciona com a mídia televisiva, há muito pouco de Reagan em Trump.
Reagan era um vigoroso defensor de uma presença global para os EUA. Trump é um isolacionista. Reagan, um forte arauto do livre comércio; Trump, um protecionista.
Reagan foi por duas vezes governador da Califórnia; Trump nunca exerceu cargo público ou eletivo.
Reagan cercava-se de assessores de alto calibre em política externa e macroeconômica; Trump praticamente não tem conselheiros nessas duas áreas de vital importância para os EUA e para o mundo.
Há, no entanto, um inegável ponto de semelhança entre Reagan e Trump. A predileção pelo jogo de opostos simples. Bom/mau. Certo/errado. Inocente/culpado.
Desaparecem empregos americanos no setor automobilístico? O problema é o Japão. Somem do território norte-americano as linhas de produção de eletrodomésticos? Culpa do México. Suposta decadência do setor manufatureiro nos EUA? Isso se deve à China e suas práticas desleais de manipulação cambial para inundar o mundo com seus produtos.
Trump tem dificuldades em enxergar os imensos benefícios geopolíticos –e econômicos– da combinação entre estratégia comercial e objetivos de política externa que uma maior interdependência econômica trouxe aos EUA no pós-Segunda Guerra.
O Japão, há um tempo inimigo, é hoje aliado estratégico e superlativa fonte de poupança externa. México –e EUA– ganharam muito com o NAFTA (Acordo de Livre Comércio da América do Norte) num mundo que, no início dos 1990, reconfigurava-se em torno da ideia de blocos econômicos.
A China das últimas quatro décadas é o maior milagre da história econômica mundial. As concessões especiais que Washington ofereceu ao comércio com Pequim desde o fim dos anos setenta ajudaram a quebrar a espinha dorsal do comunismo como força geopolítica.
Novas geometrias de comércio e investimento, como o TPP (sigla em inglês para Parceria Transpacífico), não terão vez numa presidência Trump.
E a imposição de barreiras unilaterais ao comércio com parceiros como Japão, México e China não apenas conduziria o mundo a uma guerra comercial, mas também faria despencar o valor em bolsa das multinacionais norte-americanas. Do dia para a noite, sua estrutura de custos se desmantelaria, e assim sua lucratividade seria jogada morro abaixo.
O atual candidato republicano elegeu seu “império do mal” –e o nome dele é comércio internacional.
Trump eleito, a economia mundial pagará o preço do equívoco demagógico na força da sabedoria de H.L. Mencken: “para cada problema humano há uma solução clara, plausível – e errada”.
02 de outubro de 2016
Marcos Troyjo
in Augusto Nunes, Veja
Nenhum comentário:
Postar um comentário