"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

domingo, 2 de outubro de 2016

PARA TRUMP, COMÉRCIO É O NOVO "IMPÉRIO DO MAL"

Candidato republicano elege globalização como bode expiatório

No auge da Guerra Fria, Ronald Regan buscou carregar o confronto bipolar de pesada coloração moral.

Em discurso a uma associação de evangélicos em 1983, referiu-se ao comunismo como “o foco do mal no mundo moderno”. A União Soviética tratava-se, portanto, do “império do mal”.

A frase aumentou o caráter “para além da geopolítica” da disputa Leste-Oeste. E ajudou a convencer sociedade e establishment político nos EUA da necessidade de aumentar recursos militares e diplomáticos para derrubar o regime de Moscou.

O quanto os EUA “ganharam” a Guerra Fria ou, na realidade, foi a URSS que a “perdeu” é questão em aberto e amplamente discutida pelos historiadores.

Numa interpretação mais economicista do fim da confrontação bipolar, o senador democrata Paul Tsongas, de Massachusetts, que disputou a nomeação de seu partido à Casa Branca em 1992, ofereceu sugestão diferente: “a Guerra Fria acabou, e o vencedor foi o Japão”.

Como é notório nestas eleições presidenciais nos EUA, o candidato republicano Donald Trump não entende que o Kremlin é a fonte do mal no mundo contemporâneo. Não haverá uma retomada da Guerra Fria com Moscou. Bem ao contrário, o bilionário norte-americano e Vladimir Putin trocam amabilidades publicamente.

Ainda assim, Trump e seus apoiadores gostam de fazer pensar que ele é uma reedição de Reagan. Adesivos, bandeiras, anúncios de televisão que circulam nos EUA buscam associar a imagem do atual candidato republicano à memória –positiva para os EUA– da presidência Reagan.

Apoiadores de Trump nos EUA gostam de salientar semelhanças entre Trump e Reagan. Ambos, em respectivos contextos históricos, podem ser considerados “outsiders” e desprezados pela intelligentsia e pelo establishment tradicional da política norte-americana.

Aliás, tal associação se fez também em outras partes do mundo. Nigel Farage, deputado britânico que protagonizou a campanha do “brexit”, disse há pouco que Trump é “o novo Ronald Reagan”.

A realidade é que, à parte da destreza com que se relaciona com a mídia televisiva, há muito pouco de Reagan em Trump.

Reagan era um vigoroso defensor de uma presença global para os EUA. Trump é um isolacionista. Reagan, um forte arauto do livre comércio; Trump, um protecionista.

Reagan foi por duas vezes governador da Califórnia; Trump nunca exerceu cargo público ou eletivo.

Reagan cercava-se de assessores de alto calibre em política externa e macroeconômica; Trump praticamente não tem conselheiros nessas duas áreas de vital importância para os EUA e para o mundo.

Há, no entanto, um inegável ponto de semelhança entre Reagan e Trump. A predileção pelo jogo de opostos simples. Bom/mau. Certo/errado. Inocente/culpado.

Desaparecem empregos americanos no setor automobilístico? O problema é o Japão. Somem do território norte-americano as linhas de produção de eletrodomésticos? Culpa do México. Suposta decadência do setor manufatureiro nos EUA? Isso se deve à China e suas práticas desleais de manipulação cambial para inundar o mundo com seus produtos.

Trump tem dificuldades em enxergar os imensos benefícios geopolíticos –e econômicos– da combinação entre estratégia comercial e objetivos de política externa que uma maior interdependência econômica trouxe aos EUA no pós-Segunda Guerra.

O Japão, há um tempo inimigo, é hoje aliado estratégico e superlativa fonte de poupança externa. México –e EUA– ganharam muito com o NAFTA (Acordo de Livre Comércio da América do Norte) num mundo que, no início dos 1990, reconfigurava-se em torno da ideia de blocos econômicos.

A China das últimas quatro décadas é o maior milagre da história econômica mundial. As concessões especiais que Washington ofereceu ao comércio com Pequim desde o fim dos anos setenta ajudaram a quebrar a espinha dorsal do comunismo como força geopolítica.

Novas geometrias de comércio e investimento, como o TPP (sigla em inglês para Parceria Transpacífico), não terão vez numa presidência Trump.

E a imposição de barreiras unilaterais ao comércio com parceiros como Japão, México e China não apenas conduziria o mundo a uma guerra comercial, mas também faria despencar o valor em bolsa das multinacionais norte-americanas. Do dia para a noite, sua estrutura de custos se desmantelaria, e assim sua lucratividade seria jogada morro abaixo.

O atual candidato republicano elegeu seu “império do mal” –e o nome dele é comércio internacional.

Trump eleito, a economia mundial pagará o preço do equívoco demagógico na força da sabedoria de H.L. Mencken: “para cada problema humano há uma solução clara, plausível – e errada”.


02 de outubro de 2016
Marcos Troyjo
in Augusto Nunes, Veja

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