Esteve no Roda Viva Internacional quinta-feira da semana passada o embaixador Rubens Ricupero, um dos últimos representantes vivos da “esquerda honesta”. Considerada a escuridão em que anda mergulhada a política brasileira ouvir um desses remanescentes da geração anterior tem sempre o efeito de uma iluminação. Ricupero é um homem indiscutivelmente íntegro, bem intencionado. Mas não se permite o rigor, no seu senso crítico e na coerência entre o pensar e o fazer, de um Hélio Bicudo por exemplo. Ele mantém com o dogma aquele tipo de relação que define o bom católico: ha sempre uma barreira além da qual a racionalidade, pura e simples, não está autorizada a passar.
Dou um exemplo. Foi a meu ver exata a definição de fascismo que ele deu a partir do 59º minuto da entrevista (confira aí embaixo), aplicada a Donald Trump: "Ele é um egomaníaco com traços fascistas. Tem aquele desprezo pelo conhecimento, pela informação; tem aquela atitude típica do fascismo, diz bobagens, se contradiz, mas (afirma que) isso não tem nenhuma importância porque o Fuehrer, o Duce, nunca pode se enganar. A solução de todos os problemas está encarnada num homem. Não precisa nem apresentar programa, é ele que vai resolver tudo ... É um homem que admira o Putin e que ontem recebeu o apoio do homem da Coreia do Norte, veja você!"
Se, entretanto, alguém fizesse ver a Ricupero que, substituindo-se Putin por Ahmadinejahd e "o homem da Coréia do Norte" por, digamos, "o homem da Venezuela", esta é uma descrição perfeitamente exata de Luis Ignácio Lula da Silva, ele negaria como absurda a evidência porque é da essência do indivíduo que se define como "de esquerda" que não são os fatos e o comportamento concreto de um homem no poder que o definem como fascista ou antifascista, mas sim as suas supostas intenções.
Lá pelos finalmentes, instado diretamente por um dos entrevistadores a definir esquerda e direita ele sintetizou assim a coisa:
“É de esquerda quem acha que dá pra corrigir a desigualdade e de direita quem acha que ela é um dado imutável da natureza”.
O verdadeiro divisor de águas está no modo de se encarar o valor da liberdade e o sentido de "civilização": como história concreta do esforço de superação do estado de natureza ou como utopia. O divisor de águas está, para ser mais exato, no “como” e no “pelo quê” se admite trocar a redução da diferença; se isso deve ser feito preservando-se ao máximo a liberdade, bem do qual escolher o próprio modo de ganhar a vida é a expressão mais básica e essencial, ou mandando-se a liberdade às favas.
E é aí que entra a História. Ha muito que isso não é mais um mero “achismo”. Trata-se de experiência vivida posto que essas alternativas foram amplamente testadas ao longo do século 20. Aconteceram exatamente na mesma época as reformas da “Progressive Era” dos Estados Unidos, de um lado, e as revoluções socialistas e comunistas da Europa e da Ásia do outro. E essa experiência (tragicamente) vivida deixou claro que as verdadeiras alternativas são forçar a desconcentração do poder econômico com medidas a favor da liberdade, ou seja, pela pulverização da propriedade privada em favor da concorrência que deve ser a mais ampla e a mais livre possível em benefício do cidadão nas suas dimensões mais concretas que são as de trabalhador e consumidor (legislação antitruste), ou contra a liberdade, pela concentração de toda a propriedade nas mãos de uma “vanguarda” chamada Estado, que é tão feita de gente com todos os seus defeitos quanto todas as outras.
No campo da organização política, a alternativa está em tomar decisões a esse respeito passo a passo exigindo, a cada um, a chancela direta de todos os cidadãos que serão sujeitados a elas chamando-os a atuar mediante o exercício do recall, das leis de iniciativa popular e do referendo das leis propostas pelos representantes eleitos para mandatos delimitados no tempo e no espaço, ou entregando todas as decisões à tal “vanguarda” que não admite oposição e decide tudo em nome "do povo" sem precisar consultá-lo, nem a cada passo, nem sequer a cada mandato.
Já no da economia, a escolha está entre dar a cada um o correspondente ao que ele trabalhar para entregar ao conjunto da sociedade, ou dar a cada um o que conseguir "adquirir" como "direito especial" aliando-se à tal “vanguarda” com o poder exclusivo de outorga-los.
São essas as alternativas reais. E os efeitos práticos da opção por cada uma delas, tanto para a felicidade material como para a felicidade espiritual da humanidade, estão aí para quem quiser abrir os olhos e ver, seja no passado, seja no presente.
12 de junho de 2016
vespeiro
Nenhum comentário:
Postar um comentário