"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

terça-feira, 5 de abril de 2016

PELOS CABELOS

Polêmicas por causa do cabelo: o mundo caminha para o Apocalipse? Talvez. Mas antes que a festa acabe, conto rápido.

Um estudante branco da Universidade de São Francisco, ostentando as suas rastas, foi abordado por uma aluna negra. A donzela, indignada com o cabelo do rapaz, acusou: "É a minha cultura!" O rapaz tentou justificar-se perante a agressividade da donzela. As coisas não tomaram proporções violentas porque Corey Goldstein (eis o nome do estudante) fugiu a tempo.

Fugiu, mas não esqueceu: em vídeo posterior ao incidente, Goldstein justificou-se. Ninguém é dono de uma estética particular, disse ele. E, além disso, o cabelo com rastas existiu em múltiplas culturas –dos egípcios aos vikings, sem esquecer os vitorianos. Os negros, quando muito, apenas continuaram uma tradição.

Pior a emenda que o soneto: os Estados Unidos discutem se rastas em rapazes brancos são um roubo cultural imperdoável. E até a Europa participa do delírio: no "The Independent", a escritora Wedaeli Chibelushi acusa Goldstein de desrespeitar os negros e de usar o cabelo com a arrogância própria da "supremacia branca". Será que o rapaz não conhece o papel do cabelo na luta contra o racismo e a segregação racial?

É triste constatar o fato: ontem havia Martin Luther King; hoje há idiotas que discutem penteados.

Para eles, a minha única sugestão é assistirem ao notável e premiado documentário de Chris Rock intitulado "Good Hair". Informação: da última vez que confirmei, Chris Rock não era branco. E a pergunta que anima o seu filme é tentar compreender por que motivo a maioria dos negros nos Estados Unidos tem uma relação assaz problemática com o cabelo.

Abreviando, detestam-no. E tentam desesperadamente alisar as cabeleiras com químicos e "extensões". Quando digo "desesperadamente", não exagero: Chris Rock visita uma das principais fábricas que fornece produtos químicos para o efeito. Fica na Carolina do Norte (ironicamente, um dos estados confederados que romperam com a União no século 19). Conclusão: muitos negros americanos usam hidróxido de sódio para terem belas cabeleiras lisas.

O hidróxido de sódio (ou, para os leigos, a soda cáustica) é um composto perigoso que pode causar lesões permanentes na pele. E quando um cientista, entrevistado por Chris Rock, pergunta o óbvio ("Mas por que motivo fazem isso?"), o ator responde também o óbvio ("Para parecerem brancos").

Mas não é preciso correr riscos para a saúde quando a ideia é imitar os brancos. Alguns, mais endinheirados, compram extensões e resolvem o assunto sem abrir buracos na cabeça. E de onde vêm essas extensões?

Chris Rock pega um avião e viaja para a Índia. Nos templos, é comum pagar promessas com cortes radicais. O cabelo é depois lavado, tratado e exportado para os Estados Unidos. Esses são, digamos, os fornecedores "normais".

Mas também existem máfias que atacam indianas adormecidas (ou desprevenidas) para roubarem cabelo. O destino do roubo, pago a peso de ouro, é o mesmo.

Não sei o que diriam os indignados como Wedaeli Chibelushi sobre essa realidade: a constante tentativa dos negros americanos em "apropriarem-se" dos penteados dos brancos.

Um esforço de apropriação que depende muitas vezes do risco pessoal ou da exploração dos mais miseráveis asiáticos.

Provavelmente, dirão que a culpa é novamente dos brancos e do "imperialismo" capilar que eles impõem na TV, no cinema ou na moda.

Aliás, se o "pensamento" de criaturas como Wedaeli Chibelushi fosse para levar a sério, as culturas humanas estariam condenadas a nunca se misturarem umas com as outras.

Um branco jamais poderia praticar capoeira. Um negro jamais poderia lutar kung fu. Curiosamente, seria uma nova segregação racial, promovida por aqueles que lutam contra a segregação racial. Perfeito.

Da minha parte, a única coisa que posso prometer é nunca acusar nenhum negro de "roubar a minha cultura" só porque ele usa cabelos lisos.

Infelizmente, o mesmo já não posso dizer das pobres indianas, que despertam todas as manhãs com menos peso na cabeça.



o5 de abril de 2016
João Pereira Coutinho, Folha de SP

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