"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

domingo, 11 de janeiro de 2015

PARA UMA ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

Reproduzimos nesta última edição do Arca Reaça de 2014 um dos melhores artigos de Olavo de Carvalho. É de julho de 2003 e foi publicado originalmente no jornal “O Globo”.

Para uma antropologia filosófica

A condição humana mais geral e permanente, a estrutura fixa por trás de toda variação local e histórica, pode-se resumir em seis interrogações básicas, articuladas em três eixos de polaridades, cujas tentativas de resposta, estas sim temporais e variáveis, dão as coordenadas da orientação do homem na existência. 
O primeiro eixo é “origem-fim”. Ninguém jamais soube onde e quando o conjunto da realidade começou nem como ou quando vai terminar. Pode-se arriscar uma teoria da eternidade do mundo, um mito cosmogônico ou a imagem do “big bang”, uma teologia da criação ou um atomismo materialista, cada qual com sua respectiva explicação do fim. Nenhuma delas jamais obteve aceitação universal. O que não se pode é ignorar a questão, pois dela depende o nosso senso de orientação no tempo, a possibilidade de conceber projetos e dar forma narrativa às nossas experiências. 
O segundo eixo é “natureza-sociedade”. Todo homem vive entre dois campos da realidade, um anterior e independente da ação humana, o outro criado por ela. A diferença e a articulação desses campos aparecem no contraste entre o geometrismo da taba circular e o matagal informe, na oposição de Lévi-Strauss entre o cru e o cozido, no instinto de buscar a proteção do grupo contra os animais e as intempéries ou, inversamente, no sonho rousseauniano de encontrar na natureza um abrigo contra os males do convívio social.  
A natureza pode aparecer como um pesadelo temível ou como seio materno acolhedor. A sociedade pode ser lar ou prisão, fraternidade ou guerra. Pode-se fazer da natureza uma espécie de ordem social, como na antiga cosmobiologia, ou naturalizar a sociedade, como na antropologia evolucionista. Mas essas tentativas só revelam a impossibilidade, seja de explicar um dos termos pelo seu contrário, seja de articulá-los numa equação definitiva, seja de compreender um deles sem referência ao outro. 
O terceiro eixo é “imanência-transcendência”. Cada ser humano sabe que ele próprio existe, que tem um “mundo” interior de experiências, recordações, desejos, temores. Mas sabe também que esse poço é sem fundo, que ninguém pode compreender-se ou ignorar-se totalmente, que cada alma encontra dentro de si algo de estranho e atemorizante, que cada um se conhece e se desconhece quase tanto quanto aos demais. Buscamos na nossa intimidade o abrigo contra a maldade alheia, assim como buscamos no outro, no amigo, na esposa, a proteção contra nossos fantasmas interiores. Cada um de nós é próximo e estranho a si mesmo.  
Por outro lado, para além de tudo o que se pode conhecer da realidade, para além de toda experiência alcançável, cada homem e cada cultura pressente um fator “x”, que, desde acima ou desde o fundo do fluxo dos acontecimentos, faz com que as coisas sejam o que são e não de outro modo. “Por que existe o ser e não antes o nada?”: assim formulava Schelling a interrogação suprema. Podemos tentar respondê-la pela concepção de um absoluto metafísico, de uma divindade ordenadora ou de uma fantástica auto-regulação de coincidências.  
Podemos até expulsá-la da discussão pública, deixando-a à mercê do arbítrio privado, com a abjeta covardia intelectual do agnosticismo moderno. Mas mesmo então sabemos que não escapamos dela. Entre a imanência e a transcendência, várias articulações são possíveis, mas nenhuma satisfatória. Podemos conceber o transcendente à imagem do nosso ser íntimo, como divindade bondosa que nos compreende e nos ama — mas isso fará ressaltar ainda mais o que a vida tem de estranheza fria e hostilidade demoníaca. Podemos imaginá-lo com os traços impessoais e mecânicos de uma fórmula matemática — mas isso não nos impedirá de amaldiçoar ou bendizer o destino, subentendendo nele uma intencionalidade humana quando nos oprime ou nos reconforta. 
Cada um dos pólos é uma interrogação, um misto de ignorância e conhecimento, um foco de tensões espirituais. Cada um articula-se com seu oposto, num mútuo esclarecimento — ou multiplicação — de tensões. E no ponto de interseção dos três eixos, como no das três direções do espaço, fixado na estrutura da realidade como Cristo na cruz, está o ser humano. 
Crenças, cosmovisões, doutrinas, diferem sobretudo pela hierarquia que estabelecem entre os seis fatores por meio de assimilações e reduções. Muitas culturas arcaicas privilegiavam o fator “origem”, explicando sociedade e natureza por um mito cosmogônico, ignorando a transcendência e a imanência. A escolástica medieval remeteu-se à transcendência, sonhando poder deduzir dela uma ordem intelectual completa e definitiva.  
A modernidade absorveu tudo na oposição natureza-sociedade, esperando não menos utopicamente reduzir os mistérios da transcendência e da imanência, da origem e do fim, a questões de partículas subatômicas, código genético e análise lingüística. Preparou assim o advento das ideologias totalitárias que fizeram da sociedade a razão última da origem e do fim, colocando entre parênteses a natureza, sufocando a imanência e vedando o acesso à transcendência.  
Cada um desses arranjos, mesmo o mais limitador, é legítimo e funcional a título provisório, como experimento de sondagem numa certa direção que os interesses de um momento enfatizaram. Torna-se alienante e opressivo quando se cristaliza numa proibição de olhar para além da articulação admitida. Só a abertura da alma para a simultaneidade dos seis pólos, com suas luzes e trevas, dá acesso à experiência realista da condição humana e, portanto, à possibilidade da sabedoria. Todas as explicações que, para enfatizar uma articulação em particular, negam ou suprimem a estrutura do conjunto, são falsas ou estéreis. 
Filosofias como o marxismo, o positivismo, o pragmatismo, a escola analítica, o nietzscheanismo, o freudismo, o desconstrucionismo, — todas aquelas, enfim, que ocupam o espaço inteiro do ensino acadêmico neste país — são doenças espirituais, obsessões que nos encerram hipnoticamente no fascínio de uma resposta ao mesmo tempo que apagam o quadro de referências que dá sentido à pergunta. 
Olavo-de-Carvalho

11 de janeiro de 2015 

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