Hierão I, tirano de Gela e Siracusa ao longo da primeira metade do século V antes de Cristo, se espantou quando, um tanto constrangido, alguém do seu séquito advertiu:
“Rei, tens um terrível mau hálito”.
E Hierão: “Mas como? Minha mulher nunca reclamou?”.
E ela, que estava por perto, observou:
“Pois eu sempre achei que os homens tivessem esse cheiro”.
Às vezes, as esquerdas brasileiras se comportam como Hierão e sua mulher. São incapazes de reconhecer o mau cheiro proveniente de comportamentos éticos condenáveis. Sempre viveram enorme confusão quando se tratou de entender o que pode e o que não pode. E é, em grande parte, o que explica a enorme propensão a se apropriar dos recursos públicos, de corromperem e se deixarem corromper ou de fazer acordos com o diabo, sabe-se lá com qual objetivo.
A classificação entre direita e esquerda vem dos tempos da Revolução Francesa, quando a Assembleia Nacional se dividia entre os defensores do rei (à direita) e os defensores da Revolução (à esquerda). Essa classificação já não serve para muita coisa, porque não há muito como definir esses conceitos, especialmente depois da queda do Muro de Berlim e da dissolução da União Soviética. Em todo o caso, as esquerdas brasileiras compõem-se, digamos, de segmentos políticos que defendem desde alguma forma de socialismo e de social-democracia até movimentos trabalhistas e democratas-cristãos.
A ética socialista derivada da filosofia hegeliana colocou como foco principal o determinismo histórico ou a utopia a ser inexoravelmente conquistada. O que importava aí era a ação voltada para o objetivo e não os meios usados para isso. Foi esse o tipo de justificativa apresentada para defender (ou esconder) os horrores da época de Stalin, que não vacilou em massacrar o campesinato ucraniano nem em assinar o pacto Molotov-Ribbentrop, que atropelou os interesses dos trabalhadores dos dois países que, desde o Manifesto Comunista (1848), se esperavam unidos. Aqui no Brasil esse comportamento serviu para justificar, em nome da segurança do Partido, certos justiçamentos comandados pelas lideranças.
“Rei, tens um terrível mau hálito”.
E Hierão: “Mas como? Minha mulher nunca reclamou?”.
E ela, que estava por perto, observou:
“Pois eu sempre achei que os homens tivessem esse cheiro”.
Às vezes, as esquerdas brasileiras se comportam como Hierão e sua mulher. São incapazes de reconhecer o mau cheiro proveniente de comportamentos éticos condenáveis. Sempre viveram enorme confusão quando se tratou de entender o que pode e o que não pode. E é, em grande parte, o que explica a enorme propensão a se apropriar dos recursos públicos, de corromperem e se deixarem corromper ou de fazer acordos com o diabo, sabe-se lá com qual objetivo.
A classificação entre direita e esquerda vem dos tempos da Revolução Francesa, quando a Assembleia Nacional se dividia entre os defensores do rei (à direita) e os defensores da Revolução (à esquerda). Essa classificação já não serve para muita coisa, porque não há muito como definir esses conceitos, especialmente depois da queda do Muro de Berlim e da dissolução da União Soviética. Em todo o caso, as esquerdas brasileiras compõem-se, digamos, de segmentos políticos que defendem desde alguma forma de socialismo e de social-democracia até movimentos trabalhistas e democratas-cristãos.
A ética socialista derivada da filosofia hegeliana colocou como foco principal o determinismo histórico ou a utopia a ser inexoravelmente conquistada. O que importava aí era a ação voltada para o objetivo e não os meios usados para isso. Foi esse o tipo de justificativa apresentada para defender (ou esconder) os horrores da época de Stalin, que não vacilou em massacrar o campesinato ucraniano nem em assinar o pacto Molotov-Ribbentrop, que atropelou os interesses dos trabalhadores dos dois países que, desde o Manifesto Comunista (1848), se esperavam unidos. Aqui no Brasil esse comportamento serviu para justificar, em nome da segurança do Partido, certos justiçamentos comandados pelas lideranças.
Essa ética ignora os princípios republicanos que exigem rigorosa separação entre o interesse individual e o interesse público. Ou, quando muito, apenas os observa episodicamente, quando, por exemplo, foi conveniente firmar e manter uma aliança com a “burguesia nacional”. Daí por que, se para cumprir determinados objetivos do grupo partidário é preciso mentir, roubar e corromper, que se minta, roube e corrompa, sem se deixar tomar por escrúpulos pequeno burgueses.
Se uma organização guerrilheira puder tirar proveito de acordos com narcotraficantes e com movimentos do crime organizado, como os que aconteceram com as Farc, com quem o governo do PT manteve estreitas ligações, por que não fazê-lo? Quando chegar o paraíso do proletariado ou quando a sociedade igualitária se impuser, nada disso terá importância. Eventuais excessos são o preço a pagar para alcançar o fim da história, como a destruição dos ovos para quem quer a omelete. A Revolução Francesa não teve sua inevitável fase de terror?
Esvaiu-se a utopia, sobrou a ocupação do Estado, em nome do exercício do poder pelo poder. Mas ficou a velha cultura da ação “em nome da causa”. É o que explica, também, por que o PT encara os condenados pela Justiça como vítimas do sistema elitista, neoliberal ou o que seja. Explica, também, por que seu tesoureiro João Vaccari Neto, sobre quem recaem pesadas acusações de desvio de recursos públicos, é aplaudido de pé em assembleia do partido. Ou por que o ex-ministro José Dirceu se deixa fotografar à porta da prisão com o punho cerrado estendido, como um guerreiro atacado por hordas reacionárias. Ou, então, por que o ex-presidente Lula argumenta que “essa história da corrupção é coisa da direita”.
O desmanche da Revolução Russa, a opção da China pelo capitalismo de Estado e o reatamento entre Estados Unidos e Cuba, anunciado na semana passada, já não deixam espaço para esse tipo de ética. Quem estiver disposto a assumir a defesa dos ideais republicanos e democráticos, não pode exalar o hálito de Hierão I.
Esvaiu-se a utopia, sobrou a ocupação do Estado, em nome do exercício do poder pelo poder. Mas ficou a velha cultura da ação “em nome da causa”. É o que explica, também, por que o PT encara os condenados pela Justiça como vítimas do sistema elitista, neoliberal ou o que seja. Explica, também, por que seu tesoureiro João Vaccari Neto, sobre quem recaem pesadas acusações de desvio de recursos públicos, é aplaudido de pé em assembleia do partido. Ou por que o ex-ministro José Dirceu se deixa fotografar à porta da prisão com o punho cerrado estendido, como um guerreiro atacado por hordas reacionárias. Ou, então, por que o ex-presidente Lula argumenta que “essa história da corrupção é coisa da direita”.
O desmanche da Revolução Russa, a opção da China pelo capitalismo de Estado e o reatamento entre Estados Unidos e Cuba, anunciado na semana passada, já não deixam espaço para esse tipo de ética. Quem estiver disposto a assumir a defesa dos ideais republicanos e democráticos, não pode exalar o hálito de Hierão I.
Celso Ming é Jornalista. Originalmente publicado no Estadão em 25 de dezembro de 2014.
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