"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

domingo, 10 de agosto de 2014

"DOIS AGOSTOS"

 

O verão de 1914 no Hemisfério Norte foi exuberante de sol e de esplendor. No dia 28 de junho daquele ano o escritor Stefan Zweig, aos 32 anos um nome já conhecido em toda a Europa, lia um livro no parque da estação de banhos de Baden, perto de sua Viena natal, deliciando-se com o clima impecável, o suave vento nas árvores e o gorjeio dos pássaros, quando teve a atenção despertada para o súbito silêncio da orquestra que até então animava os veranistas.

Havia uma comunicação importante a ser feita. O príncipe Francisco Ferdinando, herdeiro da coroa dos Habsburgos, e sua mulher haviam sido assassinados na Bósnia. Não se tratava, conta Zweig em suas memórias, O Mundo que Eu Vi, de personagem popular; era antipático, mantinha os olhos imóveis e nunca sorria. Ainda assim a notícia era chocante e foi recebida com comoção. Duas horas mais tarde, porém, o povo conversava e ria; à noite as orquestras tocavam; e lotavam os locais de diversão.
Em seu último dia em Baden, Zweig visitou um vinhedo da região, e o proprietário lhe disse: “Há muito não temos um verão como este. Se continuar assim, teremos um vinho como nunca. O povo não esquecerá este verão”.

Em julho o escritor decidiu passar uns dias em Le Coq, praia perto de Ostende, na Bélgica, antes de encontrar-se com o poeta belga Verhaeren, de quem era grande amigo e tradutor para o alemão. O tempo continuava esplendoroso, e as pessoas em férias, falando várias línguas, ocupavam barracas coloridas na praia e tomavam banho de mar, enquanto as crianças empinavam pipa e os jovens dançavam no cais.
Os jornais estampavam manchetes ominosas – “A Áustria provoca a Rússia”; “A Alemanha prepara a mobilização” –, mas quem as lia só por alguns minutos se alarmava. “Esses conflitos diplomáticos”, escreve Zweig, “há anos que os conhecíamos; sempre, à última hora, antes que as coisas se agravassem, se resolviam.” Melhor aproveitar os banhos, o céu alegremente entrecortado de pipas e de gaivotas e o sol, que “ria radiante sobre aquela terra pacífica”.

Uma tarde, ainda em Le Coq, Zweig reunia-se num café com amigos belgas quando viram passar um grupo de soldados. “Por que essa bobagem de marchas?”, perguntou um dos amigos. “Temos de tomar nossas precauções”, respondeu outro. “Dizem que em caso de guerra os alemães atravessarão a Bélgica.” Zweig contestou, convicto: “Nunca farão isso”. Seria contra os tratados e o direito internacional. “Vocês podem me enforcar aqui neste lampião se os alemães invadirem a Bélgica.” Nos últimos dias de julho as notícias se agravaram. O Kaiser da Alemanha e o czar da Rússia trocavam telegramas ameaçadores. A Áustria declarou guerra à Sérvia. “De repente uma rajada fria, de medo, soprou sobre a praia e a esvaziou”, registra Zweig.

Hora de voltar para casa. O escritor tomou o último trem para a Alemanha. Viajou de pé, entre passageiros que, nervosos, trocavam palpites. Mal cruzaram a fronteira, o trem parou bruscamente. Que teria acontecido? “Vi então no escuro alguns trens de carga que se dirigiam em sentido contrário, vagões abertos e cobertos com encerados sob os quais julguei distinguir as formas de canhões”, escreve Zweig. Era agosto. A Alemanha iniciava a invasão da Bélgica para, dali, atingir a França.

No dia seguinte o escritor chegou à Áustria e encontrou Viena em polvorosa. O temor pela guerra se transformara em entusiasmo. “Formavam-se préstitos nas ruas, por toda parte se viam bandeiras e fitas e se ouvia música, os jovens recrutas marchavam triunfalmente e exibiam fisionomia alegre porque o povo os aclamava, a eles, pequenas criaturas a que de ordinário ninguém dava atenção.” Zweig acrescenta, envergonhado, que, apesar de seu ódio à guerra – ele se distinguiria como pacifista –, sentiu nesse momento “algo de grandioso, arrebatador e até sedutor”.

A I Guerra Mundial duraria quatro anos e faria 15 milhões de mortos no inferno das trincheiras, nas nuvens de armas químicas ou entre as populações civis. Muitos dos mortos terão sido os jovens garbosos que Zweig viu desfilar em Viena, ou os veranistas despreocupados com quem conviveu em Baden e em Le Coq. Ainda bem que, findo o morticínio, chegou-se à conclusão de que aquela guerra, a mais monstruosa e avassaladora, tinha vindo para acabar com todas as guerras.
Neste agosto faz 100 anos que aquilo começou. Neste agosto de 2014 em que… O leitor já sabe.

10 de agosto de 2014
VEJA
ROBERTO POMPEU DE TOLEDO

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