"Tire o seu sorriso
do caminho, que eu quero
passar com a minha dor" (Guilherme de Brito)
Alguém bem que poderia avisar ao governo federal que país rico é país sem miséria da informação e sem pobreza vocabular. O resto é paliativo. É pobreza de espírito. O resto é demagogia.
Na sexta-feira passada a presidente da República, Dilma Rousseff, enunciou o seu juízo acerca da antipatia com que muitos brasileiros vêm recebendo o torneio internacional de futebol que começa hoje em São Paulo, com uma partida entre o time de atletas de nacionalidade brasileira e o time dos croatas. Na opinião da mais alta autoridade do País, estaria em marcha uma "campanha sistemática contra a Copa", que, na verdade, teria alvos nem tão desportivos assim. Na sua oratória inconfundível, a presidente exprimiu seu pensamento sobre a tal "campanha": "Mas ela, de fato, não é contra a Copa do Mundo, é uma campanha sistemática contra nós".
Tais vocábulos assim justapostos nos autorizam a deduzir que, à sombra do presidencial raciocínio, quem não se fantasia de Bandeira Nacional dando pinotes e berros no meio da rua faz oposição ao Palácio do Planalto. Isso numa interpretação otimista: a de que o pronome "nós" queira dizer "nós, o governo". Aos olhos da chefe de Estado, todo aquele que vê algo de ridículo e de ostentatório no circo das obras tão faraônicas quanto inacabadas é um adversário não do técnico Felipão, não da CBF, não da Fifa, mas desse "nós" aí que, por boa-fé, presumimos tratar-se dos que agora se acham instalados nos cargos do Poder Executivo federal. Quem não gosta de ver os garotos correndo nos instáveis gramados dos estádios bilionários comete a heresia de confundir futebol com política. Onde já se viu? "Nem na ditadura nós confundíamos Copa com política", explanou pacientemente a candidata à reeleição. "Estava eu lá presa no Tiradentes e começou a Copa. Ninguém torceu contra o Brasil" (Estado, edição de sábado, página A4).
Pelo tom da fala, não é difícil observar que a mandatária se mostra indignada. Se nem na ditadura os presos políticos tiveram a desfaçatez de torcer contra o Brasil, como é que, agora, esses abusados ousam não se deleitar com cabeceadas em plena grama, quer dizer, em plena democracia? Que história é essa? Só pode ser mesmo coisa de gente conspiratória querendo derrubar o governo, conclui a presidente. Cidadão que é cidadão torce diligentemente para o time da CBF - time ao qual vulgarmente se chama de "o Brasil". Brasileiro que é brasileiro, sempre de acordo com a lógica do Planalto, não confunde Copa com política.
Parece não ocorrer à inteligência presidencial a hipótese de que, com a máxima vênia, talvez quem mistura Copa com futebol não sejam os que hoje não se empolgam com esses supostos "canarinhos" que descem do ônibus com o fone de ouvido no pescoço e um boné de trás para a frente, mas justamente ela mesma. É ela, a presidente, quem vê intenções eleitorais (políticas, portanto) nos que não aderem à futebolística torcida varonil. Portanto, quem embola as duas coisas é ela.
Há dois dias, a torcedora-mor foi ainda mais longe em vilanizar os que desprezam a Copa. Num discurso que recitou em cadeia nacional de rádio e TV, permitiu-se proclamar o seguinte: "Treino é treino e jogo é jogo. No jogo, que começa agora, os pessimistas já entram perdendo. Foram derrotados pela capacidade de trabalho e a determinação do povo brasileiro, que não desiste nunca".
Haja autoridade.
Sigamos um pouco mais com a hermenêutica da política futebolizante da chefe de Estado. Para ela, os "pessimistas", os tais que "já entram perdendo", foram "derrotados" pelo "povo brasileiro". Logo, a seu juízo, os pessimistas não pertencem à categoria assim designada "povo brasileiro". Não apenas não pertencem a essa categoria, como são inimigos dela e por ela foram exemplarmente derrotados. Em suma, os "pessimistas" não são brasileiros, na visão da presidente da República. Ninguém neste solo tem direito ao pessimismo. Quem incorrer no crime do pessimismo contra a Copa (ou "contra nós", como ela diz) será devidamente varrido e derrotado pelo "povo brasileiro, que não desiste nunca". (Não nos espantemos se, no frêmito de portarias que vem marcando a temporada da bola solta, em mais de um sentido, o governo encaminhar ao Congresso um projeto de emenda constitucional mudando o nome do país para República Otimista do Brasil. Os "pessimistas" serão automaticamente exilados.)
Aliás, do que mesmo não desistem nunca os "brasileiros"? De obedecer? De dizer amém aos que mandam? De dizer amém e agradecer? Talvez. Em seu discurso em cadeia, Dilma Rousseff deu motivos para que a torcida nacional dedique sua melhor gratidão ao governo federal. Eis o que ela anunciou: "Reduzimos a desigualdade em níveis impressionantes, levando, em uma década, 42 milhões de pessoas à classe média". É como se dissesse: "Brasileiros, não desistam nunca de agradecer".
Aqui chegamos ao ápice do ufanismo do "país sem pobreza". Note bem o improvável leitor: o "nós", o mesmo "nós" contra o qual se levantam os ingratos que não aderem ao futebolístico sorriso oficial, é sujeito dessa oração deveras impressionante, que anuncia a também "impressionante" redução da desigualdade. Nessa sintaxe, o povo entra como objeto direto, nunca, jamais como sujeito. Nenhum brasileiro, nem mesmo os que "não desistem nunca", alcançou o paraíso da "classe média" - seja lá o que isso for - por seus méritos próprios. Os 42 milhões de pessoas que lá chegaram foram "levados" pelas mãos gentis do governo. Foram transportados, como carga na carroceria de caminhões, na viagem que os conduziu de um ponto a outro, bem ali pertinho, na planilha dos tecnocratas do bem, na viagem estatística que os tirou da penúria para instalá-los na bonança - a bonança da Copa do Mundo.
Fala verdade: e ainda querem torcer contra?
do caminho, que eu quero
passar com a minha dor" (Guilherme de Brito)
Alguém bem que poderia avisar ao governo federal que país rico é país sem miséria da informação e sem pobreza vocabular. O resto é paliativo. É pobreza de espírito. O resto é demagogia.
Na sexta-feira passada a presidente da República, Dilma Rousseff, enunciou o seu juízo acerca da antipatia com que muitos brasileiros vêm recebendo o torneio internacional de futebol que começa hoje em São Paulo, com uma partida entre o time de atletas de nacionalidade brasileira e o time dos croatas. Na opinião da mais alta autoridade do País, estaria em marcha uma "campanha sistemática contra a Copa", que, na verdade, teria alvos nem tão desportivos assim. Na sua oratória inconfundível, a presidente exprimiu seu pensamento sobre a tal "campanha": "Mas ela, de fato, não é contra a Copa do Mundo, é uma campanha sistemática contra nós".
Tais vocábulos assim justapostos nos autorizam a deduzir que, à sombra do presidencial raciocínio, quem não se fantasia de Bandeira Nacional dando pinotes e berros no meio da rua faz oposição ao Palácio do Planalto. Isso numa interpretação otimista: a de que o pronome "nós" queira dizer "nós, o governo". Aos olhos da chefe de Estado, todo aquele que vê algo de ridículo e de ostentatório no circo das obras tão faraônicas quanto inacabadas é um adversário não do técnico Felipão, não da CBF, não da Fifa, mas desse "nós" aí que, por boa-fé, presumimos tratar-se dos que agora se acham instalados nos cargos do Poder Executivo federal. Quem não gosta de ver os garotos correndo nos instáveis gramados dos estádios bilionários comete a heresia de confundir futebol com política. Onde já se viu? "Nem na ditadura nós confundíamos Copa com política", explanou pacientemente a candidata à reeleição. "Estava eu lá presa no Tiradentes e começou a Copa. Ninguém torceu contra o Brasil" (Estado, edição de sábado, página A4).
Pelo tom da fala, não é difícil observar que a mandatária se mostra indignada. Se nem na ditadura os presos políticos tiveram a desfaçatez de torcer contra o Brasil, como é que, agora, esses abusados ousam não se deleitar com cabeceadas em plena grama, quer dizer, em plena democracia? Que história é essa? Só pode ser mesmo coisa de gente conspiratória querendo derrubar o governo, conclui a presidente. Cidadão que é cidadão torce diligentemente para o time da CBF - time ao qual vulgarmente se chama de "o Brasil". Brasileiro que é brasileiro, sempre de acordo com a lógica do Planalto, não confunde Copa com política.
Parece não ocorrer à inteligência presidencial a hipótese de que, com a máxima vênia, talvez quem mistura Copa com futebol não sejam os que hoje não se empolgam com esses supostos "canarinhos" que descem do ônibus com o fone de ouvido no pescoço e um boné de trás para a frente, mas justamente ela mesma. É ela, a presidente, quem vê intenções eleitorais (políticas, portanto) nos que não aderem à futebolística torcida varonil. Portanto, quem embola as duas coisas é ela.
Há dois dias, a torcedora-mor foi ainda mais longe em vilanizar os que desprezam a Copa. Num discurso que recitou em cadeia nacional de rádio e TV, permitiu-se proclamar o seguinte: "Treino é treino e jogo é jogo. No jogo, que começa agora, os pessimistas já entram perdendo. Foram derrotados pela capacidade de trabalho e a determinação do povo brasileiro, que não desiste nunca".
Haja autoridade.
Sigamos um pouco mais com a hermenêutica da política futebolizante da chefe de Estado. Para ela, os "pessimistas", os tais que "já entram perdendo", foram "derrotados" pelo "povo brasileiro". Logo, a seu juízo, os pessimistas não pertencem à categoria assim designada "povo brasileiro". Não apenas não pertencem a essa categoria, como são inimigos dela e por ela foram exemplarmente derrotados. Em suma, os "pessimistas" não são brasileiros, na visão da presidente da República. Ninguém neste solo tem direito ao pessimismo. Quem incorrer no crime do pessimismo contra a Copa (ou "contra nós", como ela diz) será devidamente varrido e derrotado pelo "povo brasileiro, que não desiste nunca". (Não nos espantemos se, no frêmito de portarias que vem marcando a temporada da bola solta, em mais de um sentido, o governo encaminhar ao Congresso um projeto de emenda constitucional mudando o nome do país para República Otimista do Brasil. Os "pessimistas" serão automaticamente exilados.)
Aliás, do que mesmo não desistem nunca os "brasileiros"? De obedecer? De dizer amém aos que mandam? De dizer amém e agradecer? Talvez. Em seu discurso em cadeia, Dilma Rousseff deu motivos para que a torcida nacional dedique sua melhor gratidão ao governo federal. Eis o que ela anunciou: "Reduzimos a desigualdade em níveis impressionantes, levando, em uma década, 42 milhões de pessoas à classe média". É como se dissesse: "Brasileiros, não desistam nunca de agradecer".
Aqui chegamos ao ápice do ufanismo do "país sem pobreza". Note bem o improvável leitor: o "nós", o mesmo "nós" contra o qual se levantam os ingratos que não aderem ao futebolístico sorriso oficial, é sujeito dessa oração deveras impressionante, que anuncia a também "impressionante" redução da desigualdade. Nessa sintaxe, o povo entra como objeto direto, nunca, jamais como sujeito. Nenhum brasileiro, nem mesmo os que "não desistem nunca", alcançou o paraíso da "classe média" - seja lá o que isso for - por seus méritos próprios. Os 42 milhões de pessoas que lá chegaram foram "levados" pelas mãos gentis do governo. Foram transportados, como carga na carroceria de caminhões, na viagem que os conduziu de um ponto a outro, bem ali pertinho, na planilha dos tecnocratas do bem, na viagem estatística que os tirou da penúria para instalá-los na bonança - a bonança da Copa do Mundo.
Fala verdade: e ainda querem torcer contra?
14 de junho de 2014
Eugênio Bucci, O Estado de S.Paulo
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