"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sábado, 14 de junho de 2014

TRATADO DO PORÃO

                      TRATADO DO PORÃO (2a PARTE)

 
Os porões fazem lembrar lugares furtivos onde se ocultam produtos do roubo, atividades ilícitas, fugitivos da resistência armada, vítimas de sequestros e cadáveres recém encomendados. Com esses escusos empregos que deles se faz, somado à habitual falta de cuidados e de limpeza em sua manutenção, acabam se constituindo em habitats perfeitos para baratas, aranhas, cupins, ratos e outros animais escrotos que sobreviverão à hecatombe nuclear.

Por outro lado, a ameaça do holocausto atômico pode vir a reabilitar esses execrados aposentos subterrâneos como última esperança de sobrevivência da raça humana, reserva de vida no planeta. Esse espaço agourento nem mesmo a radioatividade ousa invadir. Tal redentora perspectiva não é, todavia, suficiente para recobrar sua desgastada imagem ante as honoráveis famílias.

Ninguém pensa em mostrá-los às visitas. “E aqui o nosso lindo porão: latas de tinta, tênis furado, ladrilhos de banheiro, roupas velhas da vovó, desentupidor de privada, raticida, caixa de arruelas, uma mala sem alça, o sofá roxo rasgado, baralho de mico, LPs Xou da Xuxa, um bambolê torto, livros de aritmética, coleção Barsa juvenil, revistas Sentinela e Amiga, um mapa de Aparecida, três vidros de maionese vazios e enfeites de presépio. Adiante uma linda barata morta. Aceita mais um pedaço de bolo de tâmara?”

Alguns dão-lhes um fim mais digno, transformando-os em adegas ou estúdios. Uma exceção às regras dos porões, tanto que, quando é trocada sua finalidade, o nome ‘porão’ é imediatamente suprimido.

Nas antigas residências, o porão era item obrigatório, não apenas como local para guarda de objetos e mantimentos, mas também como refúgio, proteção contra intempéries e entesouramento de valores. A arquitetura moderna, mais funcional e minimalista, defrontando-se com a problemática da escassez de espaço, tentou relegá-lo aos porões da história. Todavia, percebe-se que outros cômodos, como o quarto de empregada ou a área de serviço passaram a desempenhar a mesma função de despensa, indispensável. O que demonstra que os tempos não extinguiram a necessidade que motivou sua concepção original.

Mesmo tendo o porão sido suprimido das novas residências, assim como o foram os sótãos (ainda populares em filmes de terror), como seus préstimos ainda eram requisitados, criaram nova versão, localizando-os, no caso de edifícios, em minúsculos espaços ao lado da garagem, possivelmente para sanar algum problema de engenharia. Aliás, esse é o meu caso. Conferi a condição de ‘porão’ a uma espécie de antro adjacente ao estacionamento do prédio em que resido, o qual cada condômino pode utilizar para depositar suas inutilidades.

Essa confusão de nomenclatura explica-se pelo fato de que o conceito ’porão’, outrora caracterizado pela sua subterrânea localização geográfica, passou, em alguns casos, a ser tipificado pelo ofício que desempenha. O porão, independente de sua localização, é apenas depositário de bugigangas e afins. Ou seja, pelos entulhos e bagulhos que nele se porão.
 
(continua...)
 
(Texto extraído do livro O QUE DE MIM SOU EU)

 

                     TRATADO DO PORÃO (1a PARTE)


 
Com respeito e orgulho, apresento o meu digníssimo porão. Mede ele 2 por 2, mais ou menos. Cada um dos 4 m2 do meu porão tem sobre si 2,20 metros de altura. O compartimento abriga, portanto, aproximadamente 9 m3 de ar e de luz. Luz e ar que foram quase que completamente expulsos para dar lugar a toda sorte de objetos provindos dos mais variados confins. A altura deve ser enfatizada, mais do que o é no resto da casa, ou melhor, naquilo que não é o resto. Porquanto ninguém personifica melhor a categoria ‘resto’ do que o supracitado. Frente a ele, até a privada da área de serviço ganha ares de nobreza. Na escala de importância dos aposentos, o pobre do porão é o permanente postulante à lanterna, rebaixado que já se encontra.
 
 
Ainda que relegado a uma condição subalterna, é, por uma dessas inexplicáveis contradições habitacionais, mais exigente naquilo que o concerne. Apesar de não discriminar dos objetos pretendentes a nele se expatriarem nenhum requisito quanto à procedência, coloração ou característica física, impõe a estes a clara especificação, não apenas das dimensões de comprimento e largura, mas também as da altura. Para garantir o visto de entrada no porão, têm tais objetos de apresentar, em seu passaporte, explicitado seu volume. Essa seleção  é rigorosa e não há favorecimentos.

 
Aprovada sua admissão, os objetos ganham, em sua nova moradia, literalmente, outra dimensão, passando a estamparem sua real importância tridimensional, mensurada em metros cúbicos. Despem-se e despedem-se assim de sua antiga funcionalidade e passam à condição comum de ‘trambolhos’.

 
Todos, independente de sua origem, têm o mesmo valor relativo, proporcional a seu tamanho. Valendo-nos da terminologia marxista, poderíamos afirmar que os objetos do porão ficam desprovidos de suas intrínsecas características físicas e utilitárias, responsáveis pelo seu valor de uso, sobressaindo-se o valor social do m3, determinado pela superestrutura associada ao estágio das forças produtivas do senhorio. Naquela micro-sociedade vigora um regime exemplarmente igualitário, comunista, sem classes. Todos são, por baixo, nivelados e equitativamente designados como ‘cacarecos’.
 
 
Sua característica principal, ao serem acomodados em seu novo lar, passa a ser seu tamanho, não mais sua serventia. Enquanto na residência de origem, a pergunta habitual que os introduzia era “combina?”, “é bonito?”, “é de qualidade?”, "é útil?", “é funcional?”, em relação ao porão, a indagação determinante passa a ser “cabe?”

 
Um tapete 3 por 3, por exemplo, deixa de medir os 9 m2 que garbosamente ocupava na sala. Ao atravessar a porta de serviço e adentrar no porão, decai à mesma humilhante condição cilíndrica de 0,12 m3 que originalmente desempenhava na loja onde foi adquirido, abatida a depreciação física que deve ter corroído a parte nobre de sua exuberância, no período compreendido entre as datas da sua compra e de seu amargo descarte.

 
Reza a lenda que, tal como ocorre em Toy Story, à noite, fora do alcance dos vigilantes e perscrutadores olhares humanos, os objetos inanimados ganham vida no porão. Talvez conversem entre si, rememorando, com saudade, os magnânimos momentos quando eram imprescindíveis e venerados. Cada um tem uma triste história a narrar a seus companheiros de infortúnio, que remonta da sua concepção, fabricação, elaboração, passando por seu uso, o glorioso apogeu, até advir o inexorável período de declínio e o debacle físico que antecedeu a melancólica situação em que se encontram. Assim como presidiários em celas contíguas no corredor da morte, à espera do sinistro e inevitável destino que os aguarda, trocam confidências, estabelecem vínculos e comungam da dor por estarem relegados aos limites daquele ambiente inóspito, esquecido e quase nunca acessado pelas vivas almas. Recordam-se dos tempos de esplendor, onde podiam ser, com orgulho, ostentados. Mas não cedem à desesperança. Para não caírem no mais negro desespero, sonham com um futuro auspicioso onde a mudança de tempos e os descaminhos imprevisíveis da moda possam reabilitá-los e recompor sua essencialidade, podendo ser, novamente, objeto de admiração e ambição, sob novas bases. Quem sabe, até como valiosas antiguidades.

 
Com tais qualificações, o porão não chega a ser propriamente um cômodo. É quase um incômodo. O que se passa em seu interior, é motivo de vergonha, como denotam as expressões pouco dignas ‘porões do sistema’ ou ‘porões da ditadura’. Muitas vezes, são palcos de rituais satânicos, sacrifícios e outras aberrações humanas que pioram ainda mais a imagem que se faz desse recinto já tão segregado, que, ainda por cima, digo, ainda por baixo, fica no caminho para o inferno.
  
(continua...)
 
14 de junho de 2014
Sérgio Sayeg
do blog "o que de mim sou eu"

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