"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sábado, 14 de junho de 2014

O TODDYNHO DE SÁBADO

O encontro matinal dos magistrados da Corte

O maestro e pianista João Carlos Martins e Arnaldo Malheiros Filho, advogado do ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares, conversavam animadamente na Ranieri Pipes, acompanhados pelo dono do estabelecimento. Inaugurada em 1987, a tabacaria dos Jardins, em São Paulo, tem reunido personagens influentes da República que vão saborear charutos e cachimbos enquanto bebem e trocam impressões ligeiras sobre a vida e o país. Entre eles, o encontro é conhecido como “o Toddynho de sábado”. Qualquer um que ocupasse uma das quatro mesas na manhã de um sábado de maio poderia ouvir o bate-papo do grupo de peixes graúdos.

Pouco depois das onze da manhã, os convivas se alegraram ao ver chegar Nelson Jobim, ex-ministro da Defesa e da Justiça, e ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal. “Sua magreza está dando inveja”, disse um deles a Jobim, que vestia camisa social branca para dentro do jeans. Não havia diferença perceptível na silhueta corpulenta do político e causídico gaúcho. Mas o colega insistiu: “Se tem um medidor de magreza, é a calça jeans.”
“É inelástica”, reforçou o outro.
Jobim pediu uma cerveja preta, acendeu um charuto e o grupo começou a baforar. Um conviva citou o artigo em que o jornalista Janio de Freitas criticava a decisão de Joaquim Barbosa, presidente do STF, de negar ao ex-ministro da Casa Civil José Dirceu o direito de trabalhar fora da Papuda, onde cumpre pena por envolvimento no mensalão. “Quando ele se aposenta, presidente?”, quis saber um colega de mesa. “Em novembro”, respondeu Jobim, que presidiu o STF entre 2004 e 2006. Um deles tinha ouvido dizer que Barbosa não daria posse a Ricardo Lewandowski, seu antagonista e provável sucessor, nem aceitaria ser ministro sob sua presidência. Por isso, se aposentaria antes de completar seu mandato de dois anos à frente do tribunal – o que se confirmou duas semanas depois.

Em seguida, alguém lembrou a ocasião em que Barbosa agrediu a ex-mulher durante uma briga pela guarda do filho, em 1986. Jobim aproveitou a deixa para contar a piada de um juiz que denunciou um cidadão por ter batido na mulher, ao que alguém ponderou: “Mas, doutor, a mulher é dele!” Todos explodiram em risos.

Os quatro começaram a se perguntar por onde andaria Eros Grau, que estava atrasado. Como Jobim, Grau também é ministro aposentado do STF. Funcionários da TV Justiça esperavam por sua chegada do lado de fora do estabelecimento. Estavam produzindo um documentário sobre os ex-ministros do Supremo e iriam gravar cenas de Jobim e Grau em sua tabacaria cativa.

Enquanto Grau não aparecia, o grupo passou a comentar a eleição para o governo paulista. Um deles achava que o segundo turno seria disputado entre o atual governador, o tucano Geraldo Alckmin, e o presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, Paulo Skaf, do PMDB. Alguém disse que não via o candidato petista, o ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha, no segundo turno. Outro emendou: “Eu falei pro Alckmin: você ganha no primeiro turno se um médico cubano matar alguém três dias antes da eleição.”

João Carlos Martins contou em seguida que, numa mesa de intelectuais, tinha ouvido um elogio à coragem de Jobim, ex-ministro do governo petista, por ter votado no tucano José Serra nas eleições presidenciais de 2010. “É a declaração de alguém que entende que uma coisa é o governo e outra, o Estado”, comentou o maestro. Jobim reagiu com um sorriso acanhado e engatou mais duas piadas que arrancaram gargalhadas. Uma delas relatava a conversa de um político com a filha: “Saiba que político sem mandato é a mesma coisa que puta sem cama.”
 
"Olha o Eros”, apontou um. “Põe a cadeirinha do ministro”, orientou o dono da tabacaria a uma das garçonetes. Do lado de fora, Eros Grau se esforçava para sair do carro prateado estacionado na esquina. Quando ele entrou, todos aplaudiram. Grau deixou o STF em 2010 e desde então se dedica à literatura. É autor de Triângulo no Ponto, um romance erótico que enrubesceu a República quando lançado, em 2007, e do mais recente, Teu Nome Será Sempre Alice e Outras Histórias, que trata de temas como voyeurismo e incesto. O ex-ministro estava de paletó azul-marinho com um lenço de seda vermelho-maravilha saltando do bolso, calça cáqui e bengala à mão. “Vou tomar só uma água”, avisou à garçonete. Foi o único que preteriu os charutos cubanos por um cachimbo.

Enquanto a garçonete atendia Grau, os demais festejaram outro convidado que adentrava o salão. Era o jornalista Ricardo Kotscho, secretário de Imprensa no início do governo Lula. “Tem reunião do pleno aqui hoje?”, brincou. Ainda se juntariam ao grupo um desembargador paulistano e o embaixador e a embaixatriz do Brasil em Seul – uma artista plástica que animou os rapazes tocando no piano uma música da trilha sonora do filme O Fabuloso Destino de Amélie Poulain.

Com a chegada de Grau, a equipe da TV Justiça ligou as câmeras e começou a gravar a confraternização. Sem razão aparente, Jobim passou a listar os imóveis do colega: apartamento em Paris, casa com dezesseis suítes em Tiradentes, pousada com oito chalés na mesma cidade, apartamento em São Paulo... “Tudo isso de um bolchevique marxista”, arrematou. O grupo riu de novo. A garçonete serviu uma dose de cachaça a cada um e todos brindaram.

Menos de meia hora depois, Jobim disse que já era hora de ir. O relógio marcava 13h30 quando ele saiu caminhando Jardins abaixo, fumando um Partagás, habano vendido a 78 reais na tabacaria. Em seguida, Kotscho decidiu ir também. “Ele é petista?”, perguntou Grau quando o jornalista já havia ido. “Petista, não”, esclareceu um deles. “Mas é lulista incondicional. Agora anda meio decepcionado...”

O grupo trocou a cerveja preta por pilsene a conversa mudou de tom. Passaram a comentar o fato de as cachaças não serem vendidas em garrafas bonitas e a perda comercial que o Brasil sofre, segundo um deles, por ter sua bebida nacional com um nome de difícil pronúncia para estrangeiros. “O único que não é cachaceiro sou eu”, afirmou Grau. “Só tomo água.” Ao que o dono da tabacaria, Roberto Ranieri, retrucou: “Sei! Estou vendo que aqui é igual ao plenário: muda tudo quando tem televisão.”

14 de junho de 2014
Carol Pires, Revista Piauí

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