Estimado Mino Carta:
Desde que registrei, neste espaço, os textos de bajulação sistemática da ditadura militar publicados sob a sua direção na revista “Veja”, em 1970, você dedicou-me dois editoriais, que apareceram em edições sucessivas de “CartaCapital” (4/4 e 11/4). São peças verborrágicas, odientas, patéticas. Compreendo seu tormento, mas creia-me: estou do seu lado. Esclarecendo a verdade factual, liberto-o do fardo de ocultar seu passado.
Os editoriais trouxeram-me à mente o sarcástico ensaio “A arte de ter razão”, escrito por Schopenhauer em 1831. Nele, o filósofo enumerava as técnicas polêmicas vulgares destinadas a circundar um problema -e também ensinava a arte da refutação. Leia-o -ou, se preferir uma síntese didática, veja a “pirâmide do desacordo” de Paul Graham. Seus editoriais circulam nos níveis inferiores da “pirâmide”: o xingamento e o ataque “ad hominem”. Num voo mais alto de um único parágrafo, o segundo deles atinge o medíocre nível intermediário: a contradição (você afirma, contra provas documentais, que não bajulou a ditadura). Entendo: a refutação é, no caso, impossível.
O tal parágrafo diz que a bajulação era de brincadeirinha -uma ironia genial do herói da resistência. Mino, Mino, aí está o “argumento” perfeito para todos os jornais que, em momentos e países diferentes, bajularam os tiranos! Mas leia novamente, na minha coluna de 5/4, o que você escreveu e assinou. É a narrativa histórica completa fabricada pelo regime militar, que Médici enunciava e você repetia -a mesma que Bolsonaro ainda repete hoje. Brincalhões, esses dois aí, não?
Você brincou sem parar, naqueles anos. São edições e mais edições da “Veja” consagradas à puxação de saco explícita (não exagero, convenhamos: o acervo digital da revista está à distância de dois cliques do mouse de qualquer um). Na edição de 1º/4/1970, deparo-me com uma longa “ironia”: a reportagem de capa “Os militares”. São seis páginas dedicadas à apologia do poder militar que poderiam ter sido escritas pela assessoria de imprensa de Médici. Na edição de 4/2/1970, à página 25, encontro uma “ironia” breve: a manufatura de um álibi para os torturadores e o elogio da Oban. Desculpe-me, Mino, mas cito entre aspas.
O álibi: “(...) policiais e militares também sabem agora evitar melhor os erros. As notícias de prisões e confissões de terroristas não são mais anunciadas com tanta pressa, como antes. (...) A tática é não fornecer ao inimigo informações preciosas que lhe permitam (...) a recomposição de seus esquemas antes de qualquer ação repressiva”. Dá vontade de vomitar, não, Mino? A “tática”, você sabia muito bem (até eu sabia, aos 11 anos!), tinha outra finalidade: gerar a “janela da tortura”, um intervalo apropriado antes que as “informações preciosas” chegassem a entidades de defesa dos direitos humanos.
O elogio: “Na semana passada, a Organização Bandeirante, que coordena o combate ao terror em São Paulo, divulgou todo o trabalho feito para desarticular (...) grupos terroristas. Foi uma notícia dada em momento oportuno, tranquilizando o povo e, ao mesmo tempo, evitando prestar serviço ao terrorismo”. Vontade de vomitar, Mino.
Você não escreveu, diretamente, essas reportagens “brincalhonas”. Mas, segundo seu próprio depoimento, dirigia a revista com plenos poderes e seus patrões só a liam depois de impressa. Você recomendou as reportagens repulsivas na Carta ao Leitor. Compreendo seu descontrole.
Hoje, contorcendo-se na jaula dos níveis inferiores da “pirâmide de Graham”, você (justo você!) cobra críticas minhas ao apoio prestado pela Folha ao regime militar. Já o fiz, duas vezes, mas atenção: nunca editei a Folha; apenas escrevo colunas de opinião. Você é quem deve achar um modo de viver com seu passado. Quanto a mim, nesses tempos de Comissão da Verdade, tento ajudá-lo. Sério.
25 de abril de 2014
Demétrio Magnoli
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