"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

ANÚNCIO

 

Por motivo de mudança de ideias, vende-se uma gaiola que, por sentimentalismo, está presa a um sabiá-laranjeira. A gaiola mede 30 de frente por 10 de fundo e o sabiá não se deixou medir, por inquieto e indócil.
 
Convém explicar que o sabiá é próprio para quem gosta de colecionar auroras. Porque assim que «Febo rompe na abóbada celeste», como diria Coelho Neto, começa a derramar um bel canto que enche tudo o que for vazio e silencioso.
Se o senhor está dentro de casa e não sabe, ao certo, se o sol está nascendo, pode confiar no sabiá. Se ele estiver cantando em pizzicato, é ter logo a certeza de que é dia e há sol.
 
Também ao crepúsculo, ele solta prantos cantarinos. Até parece que leu Bilac e anda repetindo os mesmos versos da página 137: «não quero o teu alpiste, gosto mais do alimento que procuro na mata livre em que a voar me viste…». Mas o fato é que ele quer alpiste e bica o cocho com tal ímpeto que parece estar bicando todo o regime presidiário do mundo.
 
Entretanto, convém avisar ao possível comprador que o sabiá tem seus dias de spleen. E, por vezes, passa uma semana sem cantar, só meditando. Eu sei lá o que é que ele medita!…
 
Sabiá-laranjeira Turdus rufiventris
Sabiá-laranjeira
Turdus rufiventris
 
Decerto sonha com a bicicleta motorizada e azul em que ele possa ganhar a porta, a rua, a liberdade, o campo. Se ele não cantar durante sete dias, não vá comer o sabiá. Deixe que o temperamental tenor se desenoje e, quando o domingo próximo romper, possa de novo encher a vida da casa com seus gorjeios de cantador do sertão.
 
Mas note. Apesar de ser do sertão, ele detesta viola, violão e instrumentos tais. Se quer ver como ele canta, não é tocar piano, nem pistão. É abrir a torneira e fazer com que ele acompanhe o solo da água cantadeira que vai dando saudade da «fonte a cantar chuá, chuá…».
 
Por uma questão de honradez, devemos informar que a gaiola, ao contrário dos outros imóveis em moda, não se valoriza. Mas o sabiá valoriza qualquer manhã, principalmente porque será em sua casa um último ― mas eloquente ― traço de união entre sua alma e o silêncio repousante da floresta.
 
Compre este sabiá, senhor, e tenha em sua casa uma bula contra o desassossego do asfalto. E é a primeira bula que canta…
 
25 de abril de 2014
Osvaldo Molles
 
 
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(*) Osvaldo Molles (1913-1967) era paulista de Santos. Seu percurso foi eclético. Deixou rastro como escritor, romancista, contista, cronista, jornalista, radialista, compositor, letrista, roteirista. Soube captar, com olhar lírico, a alma da gente simples de seu tempo. Foi parceiro e amigo de Adoniran Barbosa, com quem compartilha a autoria de Tiro ao Álvaro (1960), gravada pelos Demônios da Garoa e por Elis Regina.
O conto aqui transcrito foi publicado no livro Piquenique Classe C ― Crônicas e flagrantes de São Paulo, lançado em 1962 pela Boa Leitura Editora. A obra, com 63 crônicas, traz ilustrações de Clóvis Graciano e prefácio de Hermínio Sacchetta. Reúne textos esparsos que o autor havia publicado em meia dúzia de periódicos, entre eles a Folha de São Paulo, a revista Manchete, o jornal Diário da Noite.
Àqueles que quiserem conhecer um pouco mais sobre Osvaldo Molles, recomendo uma visitinha ao site Cifrantiga. Aqui.

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