"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

DA RELATIVIDADE DO NÃO


 Discutíamos óperas. André Bastos Gurgel levantou a tese – e não pela primeira vez - de que Don Giovanni é um estuprador.

"Na primeira cena, há a tentativa de estupro de Anna. Don Giovanni entra furtivamente à noite, ela resistiu e no começo da ópera a vemos clamar por socorro para tentar evitar que o libertino vá embora. Ainda no primeiro ato vemos dona Elvira afirmando que don Giovanni prometeu esposá-la, mas após 3 dias ele fugiu de Burgos, in verbis, " dopo tre di da burgos t'allontani", com certeza consumou o ato, pois ela acabou virando freira no final da ópera. Ainda no primeiro ato, quando a camponesa Zerlina está prestes a casar, ele mente, afirmando que quer casar com ela no belíssimo dueto "la ci darem la mano". A mesma personagem ainda sofre uma tentativa de estupro no final do primeiro ato, que acaba com Don Giovanni tentando por a culpa no servo Leporello e quase o mata. Logo, é meio difícil achar que Mozart levou Don Giovanni- homicida, estuprador e mentiroso- ao inferno para satisfazer a sociedade da época. Casanova jamais fez isto”.

Até aí, tentativas de estupro, segundo o André, e não estupro. Mesmo assim, discutível. Prometer esposar uma mulher nunca configurou estupro. Quanto à Zerlina, meu interlocutor me remete ao o final do primeiro ato “no qual Don Giovanni tenta estuprar a camponesa. Para mim, isto é uma tentativa de estupro”.

Tentativa de estupro em público, em meio a um salão de baile? Não convence. Sem falar que a camponesinha vacila entre o “vorrei e non vorrei”, e mostra sobeja intenção de cornificar Masetto.

André ainda acha que “somando-se a posse sexual mediante fraude anterior, a tentativa de homicídio de leporello, ameaça ou constrangimento ilegal para Leporello convidar a estátua para jantar, a vontade de possuir todas as camponesas da festa após elas se embriagarem (fin che dal vino una gran festa fa preparar"), homicídio do comendador, daria uns 100 anos de reclusão em regime fechado”.

Por um lado, o leitor quer julgar um personagem do século XVIII, pelos padrões do século XXI. Vontade de possuir todas as camponesas não me parece ter constituído crime em época nenhuma. Além do mais, estamos falando de um gênero caricato, a ópera, na qual um personagem recebe uma punhalada e morre cantando. Ópera é convenção, exige um acordo entre autor e público sobre o inverossímil. Além do mais, submeter um personagem de ópera à legislação vigente, é aceitar que uma estátua de mármore fale ou mesmo aceite um convite para jantar. Por outro lado, Mozart – ou Da Ponte, como quisermos – condena Don Giovanni moralmente, não juridicamente. El burlador de Sevilla vai para o inferno, não para a cadeia.

Seja como for, é Don Giovanni – e não Don Otavio – quem tem fascinado gentes através dos séculos. Em meio a isso, o que me espanta é ver as mesmas pessoas que incensam Don Giovanni condenarem como imoral e dissoluto o pobre mortal que inventa de seguir sua trajetória. É como se o pecado fosse feio na vida e lindo no palco. O mesmo ocorre com Lolita, de Nabokov, ou Morte em Veneza, de Visconti. Na tela ou no livro, absolvemos tanto Humbert como Aschenbach. Fossem nossos vizinhos, seriam perigosos pedófilos.

Em meio a isso, o debate derivou para estupro, tout court. Defendi a tese de que estupro exige força ou ameaça. Uma boa amiga, Laís Legg, é taxativa: “Estupro é a prática não-consensual de sexo. Ponto final. Se a mulher está embriagada ou drogada, por exemplo, é estupro. E não houve ameaça ou força”.

De acordo, em termos. Ora, a bebida sempre foi um agente catalizador para o sexo. Ou desestímulo, pois quando o parceiro se passa é um desastre. Muitos casais não constituiriam família não fossem umas que outras para início de conversa. Hoje, que eu saiba, só na Suécia se aceita juridicamente o argumento de embriaguez como fator de estupro. No caso de uma mulher inconsciente por efeito da droga ou do álcool, trata-se de um estupro óbvio. A verdade é que, pelo menos no Brasil, nunca ouvi falar de punição de tais casos. É como se o Direito não os contemplasse.

Mas há graus de embriaguez. Uma mulher pode estar ligeiramente bêbada, bastante bêbada ou mesmo inconsciente de tão bêbada. Se no último caso se trata obviamente de estupro, como penalizar os dois primeiros? Quantas taças de vinho tipificam o estupro? Difícil quantificar.

Volta Laís à liça: “Nos casos onde houver consciência (neurológica, é claro) suficiente para dizer "não quero", também será estupro. Como já disse, o ato tem que ser consensual”.

Relativo, Laís. Quantas mulheres casadas fazem sexo com o marido, sem querer sexo, apenas porque o marido afinal é o marido? Sim, acaba havendo um consenso. Mas não muito. A relação é a contragosto.

Já houve mulher que me dizia "não, não", enquanto me puxava com as mãos contra seu corpo. E isso sem beber nada. Houve ocasiões em que o não era um sim óbvio e, só por espírito de porco, eu aceitava a negativa. "Não queres? Então não vais ter".

Diria mais: que todas nossas mães – falo de nós, sexappealgenários – começaram sua vida sexual com um não. Talvez houvesse virgem mais ousada – como sempre houve em todos os tempos – que não se preocupasse com as “etapas do orgulho feminino”, das quais falava Stendhal. Mas, como regra, certamente começaram com uma negativa.

Mesmo em meus dias de jovem, a recusa era bastante usual nos meios universitários. Não tínhamos maiores problemas com balconistas, enfermeiras, domésticas. Quanto às universitárias, muitas vezes era um árduo pelejar. Só após muitas doses de Simone de Beauvoir consentiam em entregar suas primícias.

Outro leitor me adverte: “Por aqui também se considera estupro se uma mulher de 18 anos transa com um menino de 13...” Suponho que me escreva dos Estados Unidos. Aqui também não difere muito.

Já comentei várias vezes o caso de um encanador de Minas Gerais, que foi acusado nos anos 90 pelo estupro de uma menina de doze anos. Segundo a legislação vigente, relações com menores de quatorze anos, mesmo consensuais, são consideradas estupros. A menina afirmou em depoimento ter consentido com a relação sexual. “Pintou vontade” — disse. Uma legislação vetusta, que considera estupro toda relação — consentida ou não — com menores de quatorze anos, havia encerrado no cárcere o infeliz que aceitou a oferta.

Coube ao ministro Marco Aurélio de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), absolver, em 96, o encanador. Na ocasião, o ministro foi visto como um inimigo da família e da moralidade pátria. Nosso Código Penal é defasado — disse o ministro — e os adolescentes de hoje são diferentes. Sugeriu um limite de doze anos para a aplicação da sentença de violência presumida. "Quando esse limite caiu de dezesseis para quatorze, na década de 40, a sociedade também escandalizou-se", afirmou. O direito é o cadinho histórico dos costumes, aprendi em minhas universidades. A fundição é lenta. Enquanto o legislador dormia, os tempos mudaram.

Como condenar alguém por estupro alguém que se relaciona com meninas de doze anos que se prostituem? É óbvio que a relação foi consensual. Provavelmente terá sido procurada pelas meninas. É crime que clama aos céus justiça ver meninas de doze anos prostituídas? Claro que é. Mas que se procure outro réu, que se crie outra tipificação jurídica para punir este crime. Que não se puna um homem que cometeu o mesmo gesto que pelo menos 42.785 – e obviamente serão muito mais – outros brasileiros cometeram.

Há uns dois ou três anos, recebi mail de uma jovem, adorável e bem-sucedida vovó, que evocava nossas loucuras de juventude. “Fui uma de tuas namoradas mais precoces, não é verdade? Lembras que te disse que tinha 14 anos? Eu menti. Tinha treze. Não queria te assustar".

Serei, por acaso, um estuprador?

A idade de consenso sexual na Espanha é doze anos. Serão todos os espanhóis estupradores? Maria concebeu aos 13. Será o Cristo fruto de um estupro do Paráclito? Terá a cultura ocidental, em suas origens, um estupro? Se há milhares de meninas de dez a doze anos engravidando no Brasil, em que cadeia estão os milhares de estupradores? Pelo que estudei na universidade, o costume faz a lei caducar. Se se pretender punir como estuprador quem tem relação com meninas de doze ou treze anos, haja prisões neste país.


06 de fevereiro de 2014
janer cristaldo

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