Novas políticas de acolhimento à infância são perfeitas na teoria, mas esbarram na baixa empatia do público com o tema
O setor de atendimento à infância e adolescência em situação de risco tem, pela frente, um deserto a atravessar. Lá se vão cinco anos desde que as novas diretrizes para o setor foram aprovadas, mas ainda não se pode dizer que sejam uma realidade. Pior. O trabalho exaustivo capitaneado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e pelo Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) tarda em chegar ao cidadão comum, o que faz dessa conversa um colóquio entre marcianos.
Caso alguém ainda lave as mãos, por julgar esse assunto uma questão “da alçada de quem trabalha com menores”, vale um refresco à memória. Com base no que se convencionou chamar Nova Lei da Adoção, modificou-se da água para o vinho o funcionamento das casas-lares. Não podem mais ser afastadas. Nem ter mais que 20 moradores. Tampouco seus inquilinos devem permanecer por lá mais de dois anos. A mais importante das recomendações é que crianças e adolescentes abandonados devem ficar próximas de seus pais – por piores que possam parecer –, parentes e pessoas com quem tenham laços. Chácaras, pavilhões e congêneres dos antigos formatos e educandários ficam para o passado. Na falta de uma família para chamar de sua, os pequenos têm direito a programas de famílias substitutas, algo próximo do que se convencionou chamar de pais sociais. Algo ao contrário disso, só se for excepcional. Sim, é isso mesmo – as novas diretrizes tornam a adoção ainda mais complicada do que já era.
Não se trata aqui de colocar em discussão o que órgãos competentes listaram, em meio a uma longa lição de casa. Cada linha do projeto foi discutida à exaustão. Não se pode acusar as diretrizes de levianas. São sólidas e atendem às necessidades da infância vulnerável, de acordo com a experiência de profissionais e líderes que trabalham com ela. O problema é a aplicação. As pequenas casas, espalhadas pela cidade, devem estar debaixo da custódia de uma equipe técnica capaz de garantir o retorno à família. O parangolé é como o poder público vai dar conta disso, tamanha sua paixão pelo andar pesado dos dinossauros. O atendimento à infância via serviço público pode ser a pior das viagens. Ser aprovado em concurso não implica ter unção e ciência para o trato com vítimas da violência doméstica e abandono.
Não é tudo. “E o financiamento? É preciso pensar em como essas pequenas casas vão se manter”, lembra a jornalista Paola Carriel, mestranda em Ciências Sociais da UFPR, pesquisadora da área de infância e adolescência. Ela se refere ao Instituto Nauru, em Curitiba, que baixou suas portas em março deste ano, impossibilitado de se manter com os esquálidos recursos da Fundação da Ação Social. O Nauru cumpria as diretrizes do Conanda.
De acordo com o pesquisador Rodrigo Navarro, a tendência continua sendo a de que o poder público recorra às organizações não governamentais, terceirizando as diretrizes. Outra batalha: as ONGs, como se sabe, vivem debaixo de abalos sísmicos, em geral provocados por contadores despreparados em gerir a coisa pública. Os meninos e meninas, mais uma vez, pagam a conta. “É um setor de alta complexidade”, alerta Navarro, atento à delicadeza do assunto, e aos riscos de tratá-lo no calor da hora.
A saída só pode ser a boa política. Às vezes, acontece. A descentralização das casas-lares se desenha aos poucos no Brasil. É uma lenha. Exige que mais gente trabalhe com as famílias, via sola de sapato e aumento no número dos centros de referência em assistência social, os Creas e os Cras – ao todo, são 705 centros em todo o estado. Esses órgãos serão cada vez mais chamados à mediação, levando os pais e parentes a educarem os filhos, e não os abrigos. “Abrigo passa a ser a última alternativa”, informa Navarro.
Em tempo. A Fundação de Ação Social de Curitiba é campeã em acolhimento de crianças e adolescentes no Brasil, com mil vagas, distribuídas em dez unidades da própria prefeitura e 48 administradas por ONGs. Um plano de acolhimento, nos moldes do Conanda, está “em construção”, como se diz no movimento social. Sabe-se que do xadrez é o mais difícil. Há, por exemplo, 70 adolescentes não adotáveis, impermeáveis às novas regras. Olhando bem de perto, dá até para tremer as pernas e duvidar da eficácia do modelo que se propõe daqui para a frente. Trabalhar com as famílias dos abandonados, afinal, era até então apenas um discurso na ponta da língua. Agora, uma exigência. Fim da abstração.
15 de dezembro de 2013
Editorial Gazeta do Povo - PR
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