A historinha é conhecida. Vespasiano, o imperador, em 22 de junho de 79 d. C., pouco antes de morrer, em carta ao filho Tito, aconselhava-o a concluir a construção do Colosseum (Coliseu), que daria a ele “muitas alegrias e infinita memória”. Pois, entre um banheiro, um banco de escola ou um estádio, o povo preferia sentar nas arquibancadas deste último.
O conselho se fundamentava na ideia de que seduzir a plebe com pão e circo era a melhor receita para diminuir a insatisfação popular contra os governantes. Tito acabou inaugurando o famoso monumento, no centro de Roma, com 100 dias de festa.
Descortinava-se, ali, a era do “panis et circensis”, que consistia em proporcionar, naquela arena, espetáculos sangrentos entre gladiadores e distribuição gratuita de pão.
Implicava alto custo aos cofres do Império, com elevação de impostos e economia destroçada, mas a prática populista emprestava enorme prestígio aos imperadores romanos. É sabido que os jogos, ao longo da história da Humanidade, funcionaram como verniz para ilustrar a imagem de governantes.
Hoje, a estratégia para cooptar a simpatia das populações por meio das artes/artimanhas e do entretenimento continua recebendo atenção de administradores públicos de todos os quadrantes.
Não por acaso, nossas arenas esportivas, que se preparam para abrigar os jogos da Copa de 2014, deverão colorir o portfólio de feitos do governo. O que tem mudado na paisagem dos espaços lúdicos não é a ambição dos condutores dos Estados de alçar os píncaros da fama, mas o comportamento das plateias.
Espectadores que, outrora, fruíam a catarse dos embates esportivos, exaltando ou deplorando a performance de contendores, tornam-se eles próprios competidores, lutadores, gladiadores, disparando uns contra outros não apenas a arma das imprecações, mas armas de fogo e partindo para a violência física.
A alteração comportamental das pessoas que vão aos estádios é preocupante, principalmente em nosso território, que elege o futebol como esporte nacional, e se depara, a cada campeonato, com os novos sujeitos, as chamadas torcidas organizadas.
O fenômeno toma vulto ante o risco de o Brasil vir a ser, por excelência, o palco da violência futebolística, pela constatação de que o aparato da segurança pública tem sido ineficaz para debelar a desordem e a pancadaria nas arquibancadas, a par de medidas paliativas, como cerceamento de torcedores a estádios, majoração de ingressos, jogos com portões fechados, perda de mando de campo e multas aos clubes.
Pouco adiantará administrar as tensões e conflitos sob o escudo policial-repressivo. Como se diz no vulgo, o buraco é mais profundo e está em baixo. A mobilização de pessoas para formação de grupos e a organização de torcidas obedecem a nova ordem que impregna a dinâmica social no mundo contemporâneo.
A competição assume posicionamento singular em todos os setores, espaços, núcleos, categorias profissionais e classes sociais. As massas fragmentam-se em núcleos, cada qual envergando bandeiras, discursos, uniformes, armas e instrumentos. Os avanços civilizatórios nos campos da macroeconomia, da política e da cultura abrem comportamentos diferentes, multiplicando as pequenas organizações sociais e gerando novos pólos de poder.
Os espaços urbanos ganham novos contornos, a esfera do trabalho traz novos desafios e a busca de uma identidade passa a ser central para os indivíduos, principalmente os jovens, motivados a expressar valores como masculinidade, coragem, companheirismo, coesão, solidariedade, sentimento de pertinência a um grupo.
Fazer parte de torcidas, como a Mancha Verde, os Gaviões da Fiel, a Independente, passou a ser referência para habitantes de cidades congestionadas, carentes de serviços e de lazer.
Ao escopo semântico – onde se agrupam as agruras sociais – adiciona-se uma estética de diferenciação, caracterizada pelas cores – o verde, o vermelho e preto, o preto e branco, o azul, o amarelo canarinho – os símbolos (gavião, porco, urubu, galo, raposa, coelho, timbu, baleia, leão), a vestimenta com os dizeres da moda, o estilo de andar, de pensar, de perambular em bandos, e, fechando o circuito, a espetacularização midiática, por meio da qual os torcedores poderão ver nas telas de TV seus gestos, feições alegres ou crispadas de ódio e ouvir gritos de guerra.
Condenar as turbas com designativos de vândalos, bandidos, selvagens, adensar forças policiais em estádios, continuar a usar meios tradicionais, como punição a clubes, não conseguirão eliminar a violência das torcidas organizadas. Mais cedo ou mais tarde, os atos voltarão.
O disciplinamento e a ordem hão de levar em conta a elevação de padrões comportamentais, ancorada no esforço de educação (reeducação) de torcedores fanáticos.
Não se trata de implantar meras ações de marketing cultural – eventos festivos e associativos para alinhamento dos torcedores ao espírito do clube – mas de um amplo programa com o objetivo de compor um ideário voltado para engrandecer o espírito da democracia, com respeito aos princípios da ordem e disciplina, que não devem ser incompatíveis com o entusiasmo das torcidas.
É evidente que ante a moldura de extrema competitividade e crescente agressividade entre grupamentos sociais, um esforço nessa direção não será tarefa fácil. O que aqui se propõe é uma ação cívica dos clubes de futebol na tentativa de ajudar o Estado brasileiro a melhorar a argamassa do edifício da cidadania.
É inimaginável que torcidas se vejam como inimigas tomadas de ódio e virulência; e que o sarro tirado por um bandeirinha na direção de um grupo nas arquibancadas, o apito errado de um juiz, um ato menos educado de um policial ou um xingamento de um torcedor sejam motivo para a pancadaria. Nem Vespasiano nem Tito imaginariam que, um dia, o dístico “panis et circensis” seria acrescido de “violentia”. Fosse assim, o velho Coliseu não estaria em pé.
15 de dezembro de 2013
Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação.
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