Se algum cidadão da Suécia, do Japão, dos Estados Unidos ou de outra terra estrangeira estiver acompanhando o noticiário sobre a Papuda, é provável que tenha formado uma opinião bastante exótica a respeito do sistema prisional brasileiro.
Até porque a justiça penal, as políticas correcionais e a legislação criminal de um país são elementos convenientes para se compor o retrato rápido de qualquer sociedade.
Por vezes, uma informação fragmentada basta. Poucas semanas atrás, por exemplo, o mundo se surpreendeu com uma notícia curta que dizia muito. Apesar de insólita, era autoexplicativa e autossuficiente: a Suécia iria fechar quatro prisões e um centro de detenção por falta de presos. A taxa de encarceramento vinha caindo há uma década, ponto.
Outras vezes, mesmo informações aos montes revelam apenas o quanto ainda falta desvendar. É o caso do sistema prisional indevassável como o do Japão. David McNeill, do semanário britânico “The Economist”, um dos raros jornalistas ocidentais autorizados a visitar o presídio de Chiba, nas cercanias de Tóquio, observou que os detentos japoneses são proibidos de olhar os carcereiros nos olhos, não podem falar entre si exceto durante refeições e pausas, não recebem remuneração no trabalho e não podem ler livros. Ou seja, política de reabilitação zero.
Ao mesmo tempo, o Japão não teve uma só rebelião desde a Segunda Guerra Mundial em suas 188 prisões. Fugas, consumo de drogas e contrabando são quase inexistentes. A taxa de encarceramento está abaixo a da maioria dos países desenvolvidos — 55 para cada cem mil habitantes, contra 274 no Brasil — enquanto o recurso ao confinamento solitário do preso, há tempos condenado pela ONU, continua a fazer parte do receituário básico. Enforcamentos também. O de três homicidas ocorrido no início do ano só foi anunciado a posteriori.
No outro extremo, por transparente, acessível, público, dissecado por dentro e vigiado por fora, além de submetido a todo tipo de análises constantes, está o sistema prisional dos Estados Unidos. Com 716 encarcerados para cada cem mil habitantes ele lidera, disparado, o ranking dos 223 países da lista.
Não é de hoje que essa população carcerária representa um quarto do total mundial, enquanto os americanos somam apenas 5% da população do planeta. Junto com a pena de morte e o direito constitucional ao porte de armas, a legislação criminal do país se equilibra entre surtos e solavancos.
No momento, a questão de justiça penal mais perturbadora se refere aos “Vivos mortos”, tradução livre de um estudo recém-divulgado pela American Civil Liberties Union, intitulado “A living death”. Refere-se a 3.729 condenados à prisão perpétua sem direito a recurso que não cometeram nenhum crime violento. Foram condenados por assalto e furtos (20%) ou crimes relacionados a drogas (79%). Nenhum homicídio.
O estudo também apontou a esperada disparidade racial: 65% dos “Vivos mortos” são negros, apesar de os negros representarem apenas 13% da população do país, e 18% de brancos.
Tem mais. Levantamento feito em 2008 pela Human Rights Watch computou mais de 2.500 menores de 18 anos cumprindo pena de prisão perpétua sem direito a recurso em 43 estados americanos. A aplicação deste tipo de sentença para menores está proibida pela Convenção dos Direitos da Criança da ONU desde 1989 e foi ratificada por todos os países-membros. Exceto três: Sudão, Somália e Estados Unidos. Em matéria de más companhias, não poderia ser pior.
Diante disso, no ano passado, a Human Rights Watch, junto com a Ordem dos Advogados do Japão e da África do Sul, encaminhou um apelo formal à Corte Suprema em Washington para o banimento da prática. Na verdade, os juízes já haviam tomado duas decisões civilizatórias a respeito de condenações de jovens criminosos: haviam banido a pena de morte que ainda vigorava para eles, e também a perpétua sem direito a condicional para os menores que não tivessem cometido crimes hediondos. A terceira e última barreira — vetar a prisão perpétua automática do menor, qualquer que seja o crime cometido — completou a dívida. A partir de agora os tribunais precisarão levar em conta eventuais atenuantes ao revisar algum caso.
Só que a Suprema Corte não se pronunciou sobre a retroatividade (ou não) das decisões tomadas, cabendo ao Judiciário de cada estado fazer a própria interpretação. Na semana passada a Pensilvânia votou contra a aplicação retroativa da decisão federal — o estado tem 520 menores condenados à perpétua mofando em seus presídios.
A partir desta semana quem se interessar pelo tema passará a acompanhar o caso de Adolfo Davis. Em 1990, Adolfo tinha 14 anos e 2 meses, media pouco mais de 1,50m e pesava 45,5kg. Filho de mãe alcoólatra e pai sumido, morava com a avó quando foi adotado pela gangue dos Chicago Gangster Disciples. Num confronto do qual participou, os Disciples mataram à bala dois jovens de outra gangue.
Adolfo foi julgado como cúmplice e condenado à perpétua. Ficou os quatro primeiros anos em isolamento por mau comportamento — dos 14 aos 18, portanto. Passaram-se 23 anos. Quatro meses atrás completou 37 anos. O Illinois onde cumpre pena é um dos 13 estados americanos que aceitam o caráter retroativo da nova lei.
Adolfo acredita que tem fortes chances de ter seu caso reaberto pela Justiça. Como todo preso que só conhece a segurança das grades, começa a pensar no medo do “lá fora”. Da infância e da adolescência deletadas guarda um desejo incongruente para um quase quarentão e condenado a vivo morto: conhecer a Disney.
01 de dezembro de 2013
Dorrit Harazim, O Globo
Até porque a justiça penal, as políticas correcionais e a legislação criminal de um país são elementos convenientes para se compor o retrato rápido de qualquer sociedade.
Por vezes, uma informação fragmentada basta. Poucas semanas atrás, por exemplo, o mundo se surpreendeu com uma notícia curta que dizia muito. Apesar de insólita, era autoexplicativa e autossuficiente: a Suécia iria fechar quatro prisões e um centro de detenção por falta de presos. A taxa de encarceramento vinha caindo há uma década, ponto.
Outras vezes, mesmo informações aos montes revelam apenas o quanto ainda falta desvendar. É o caso do sistema prisional indevassável como o do Japão. David McNeill, do semanário britânico “The Economist”, um dos raros jornalistas ocidentais autorizados a visitar o presídio de Chiba, nas cercanias de Tóquio, observou que os detentos japoneses são proibidos de olhar os carcereiros nos olhos, não podem falar entre si exceto durante refeições e pausas, não recebem remuneração no trabalho e não podem ler livros. Ou seja, política de reabilitação zero.
Ao mesmo tempo, o Japão não teve uma só rebelião desde a Segunda Guerra Mundial em suas 188 prisões. Fugas, consumo de drogas e contrabando são quase inexistentes. A taxa de encarceramento está abaixo a da maioria dos países desenvolvidos — 55 para cada cem mil habitantes, contra 274 no Brasil — enquanto o recurso ao confinamento solitário do preso, há tempos condenado pela ONU, continua a fazer parte do receituário básico. Enforcamentos também. O de três homicidas ocorrido no início do ano só foi anunciado a posteriori.
No outro extremo, por transparente, acessível, público, dissecado por dentro e vigiado por fora, além de submetido a todo tipo de análises constantes, está o sistema prisional dos Estados Unidos. Com 716 encarcerados para cada cem mil habitantes ele lidera, disparado, o ranking dos 223 países da lista.
Não é de hoje que essa população carcerária representa um quarto do total mundial, enquanto os americanos somam apenas 5% da população do planeta. Junto com a pena de morte e o direito constitucional ao porte de armas, a legislação criminal do país se equilibra entre surtos e solavancos.
No momento, a questão de justiça penal mais perturbadora se refere aos “Vivos mortos”, tradução livre de um estudo recém-divulgado pela American Civil Liberties Union, intitulado “A living death”. Refere-se a 3.729 condenados à prisão perpétua sem direito a recurso que não cometeram nenhum crime violento. Foram condenados por assalto e furtos (20%) ou crimes relacionados a drogas (79%). Nenhum homicídio.
O estudo também apontou a esperada disparidade racial: 65% dos “Vivos mortos” são negros, apesar de os negros representarem apenas 13% da população do país, e 18% de brancos.
Tem mais. Levantamento feito em 2008 pela Human Rights Watch computou mais de 2.500 menores de 18 anos cumprindo pena de prisão perpétua sem direito a recurso em 43 estados americanos. A aplicação deste tipo de sentença para menores está proibida pela Convenção dos Direitos da Criança da ONU desde 1989 e foi ratificada por todos os países-membros. Exceto três: Sudão, Somália e Estados Unidos. Em matéria de más companhias, não poderia ser pior.
Diante disso, no ano passado, a Human Rights Watch, junto com a Ordem dos Advogados do Japão e da África do Sul, encaminhou um apelo formal à Corte Suprema em Washington para o banimento da prática. Na verdade, os juízes já haviam tomado duas decisões civilizatórias a respeito de condenações de jovens criminosos: haviam banido a pena de morte que ainda vigorava para eles, e também a perpétua sem direito a condicional para os menores que não tivessem cometido crimes hediondos. A terceira e última barreira — vetar a prisão perpétua automática do menor, qualquer que seja o crime cometido — completou a dívida. A partir de agora os tribunais precisarão levar em conta eventuais atenuantes ao revisar algum caso.
Só que a Suprema Corte não se pronunciou sobre a retroatividade (ou não) das decisões tomadas, cabendo ao Judiciário de cada estado fazer a própria interpretação. Na semana passada a Pensilvânia votou contra a aplicação retroativa da decisão federal — o estado tem 520 menores condenados à perpétua mofando em seus presídios.
A partir desta semana quem se interessar pelo tema passará a acompanhar o caso de Adolfo Davis. Em 1990, Adolfo tinha 14 anos e 2 meses, media pouco mais de 1,50m e pesava 45,5kg. Filho de mãe alcoólatra e pai sumido, morava com a avó quando foi adotado pela gangue dos Chicago Gangster Disciples. Num confronto do qual participou, os Disciples mataram à bala dois jovens de outra gangue.
Adolfo foi julgado como cúmplice e condenado à perpétua. Ficou os quatro primeiros anos em isolamento por mau comportamento — dos 14 aos 18, portanto. Passaram-se 23 anos. Quatro meses atrás completou 37 anos. O Illinois onde cumpre pena é um dos 13 estados americanos que aceitam o caráter retroativo da nova lei.
Adolfo acredita que tem fortes chances de ter seu caso reaberto pela Justiça. Como todo preso que só conhece a segurança das grades, começa a pensar no medo do “lá fora”. Da infância e da adolescência deletadas guarda um desejo incongruente para um quase quarentão e condenado a vivo morto: conhecer a Disney.
01 de dezembro de 2013
Dorrit Harazim, O Globo
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