Professor do curso de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas e pesquisador irrequieto, Matias Spektor encontrou por acaso na quinta-feira o documento de enorme valor histórico, que coloca a condução de tortura e morte de opositores durante a ditadura militar no gabinete presidencial. Spektor olhava documentos liberados pela CIA em 2015, e que estão disponíveis online, quando se deparou com o relatório do chefe da agência, William Colby, para o então secretário de Estado, Henry Kissinger.
Em um texto conciso, ficam expostas as tratativas entre o presidente Ernesto Geisel e três de seus generais de centralizar no Palácio do Planalto as decisões sobre as eliminações. “O que o Geisel faz é chamar para si a responsabilidade (da repressão)” — afirma o pesquisador da FGV.
Qual a coisa mais importante do documento que o senhor encontrou?A coisa mais importante deste documento é que temos uma evidência empírica no mais alto nível, da agência de inteligência norte-americana, implicando três presidentes da ditadura militar na política não só de repressão à guerrilha no Araguaia, ou a guerrilha urbana, mas também à política de execuções sumárias de gente presa sob o resguardo do estado brasileiro, gente desarmada. Esta á a coisa mais importante, sem dúvida, deste documento.
Ali está a segunda evidência de que o presidente Ernesto Geisel não só compactuava, como ordenou a continuidade de uma política de assassinatos. Isso muda o modo de a historiografia enxergar Geisel?Eu acho que ilustra, com nova evidência, aquilo que o (jornalista) Elio Gaspari já mostrou: que o Geisel, apesar de ser o presidente da abertura, também reprimia. Isso não é novo. Isso está no Gaspari (no livro “A Ditadura Derrotada, de 2003). O ponto que confunde muito as pessoas é a ideia falsa de que a abertura é o oposto de repressão – e não é. Você pode ter abertura com repressão. Este documento é mais instância deste processo (de abertura).
O documento muda o entendimento, o que se sabia sobre o presidente João Figueiredo, que ainda é um personagem pouco estudado?Ele é pouco explorado. O que mostra é o papel que o Figueiredo tinha, desde o início do governo (Geisel), de concentrar no Palácio do Planalto essas decisões. Isso é importante por quê? Porque quando Geisel chega ao poder, ele está entre a cruz e a espada. Se ele não reprimir, a linha dura vai continuar matando, derrubando a legitimidade e a força do presidente. (Geisel é) um presidente que não tem votos, ele não tem a legitimidade dos votos, ele depende do apoio da caserna para governar. Mas se ele continua reprimindo no mesmo nível, ele não consegue fazer a abertura. Então, o que o Geisel faz, é chamar para si a responsabilidade (da repressão), para poder abrir – mesmo que essa abertura seja de cunho repressor. O Figueiredo, no documento, aparece como o implementador dessa política.
Já se sabia que Figueiredo tinha papel nisso, por ser chefe do SNI, mas não havia sinais de que sua mão diretamente na tortura e no assassinato, certo?Exatamente.
Qual a importância deste informe ter sido enviado pelo diretor da CIA, William Colby, diretamente ao secretário de Estado, Henry Kissinger?É de importância absoluta. É um documento sobre uma conversa reservada na cúpula mais alta do regime (militar brasileiro), que é informada pela cúpula mais alta da CIA, ao secretário de Estado dos Estados Unidos. Sendo que, no momento em que o Kissinger recebe esta informação, a política dele de aproximação com o Brasil já está em andamento há muito tempo. A política de aproximação do Kissinger ao Brasil começa no governo Médici: é quando o (presidente) Médici vai aos Estados Unidos e o (presidente americano Richard) Nixon fala: “Para onde for o Brasil, irá o resto da América Latina”.
Neste momento, Kissinger está particularmente interessado em algo no Brasil?Sim. Neste momento toda a América do Sul estava enfrentando níveis grandes de instabilidade. Tinha acabado de ocorrer o golpe de Estado contra Salvador Allende no Chile (que instaurou a ditadura de Augusto Pinochet, apoiado pelos Estados Unidos), e a preocupação do Kissinger era fortalecer o Brasil, para que o Brasil pudesse cumprir uma função de organizador do espaço sul-americano numa chave autoritária. Ou seja: o Kissinger usa o Brasil para lutar a guerra fria na América do Sul.
Neste contexto, os métodos “extra-legais” de repressão aos “subversivos” – tortura e assassinato – eram fundamentais para o Kissinger saber que o Brasil estava cumprindo este papel?Exatamente. A atitude do Kissinger, que a gente já sabe graças aos documentos já abertos, é sempre a de dizer para os regimes autoritários sul-americanos: “façam o que precisam fazer, mas façam rápido”.
Qual a importância de saber que o presidente da República – no caso, Geisel – não só aquiesceu, mas ordenou uma política secreta de assassinato de opositores?É de enorme importância para a historiografia brasileira. A gente já sabia que no regime militar houve assassinato de opositores, que houve um processo de caça a opositores, mas ler isso num documento nesse nível de detalhe – o documento se refere a 104 pessoas mortos pela CIE no último ano e pouco do governo Médici, ou seja, em 1973 – isso deixa qualquer um muito assustado a respeito de um período recente da história brasileira. É uma anomalia gigantesca.
Por que o senhor disse que o documento é perturbador?Porque mostra que a liderança política no Palácio do Planalto estava tomando decisões sobre a vida e a morte de cidadãos.
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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – CIE é o Centro de Inteligência do Exército. Quer dizer, a CIA (Agência Central de Inteligência) dos Estados Unidos mandava, e o CIE brasileiro obedecia. Isto é que é um país independente. (C.N.)
NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – CIE é o Centro de Inteligência do Exército. Quer dizer, a CIA (Agência Central de Inteligência) dos Estados Unidos mandava, e o CIE brasileiro obedecia. Isto é que é um país independente. (C.N.)
12 de maio de 2018
Leandro Loyola
O Globo
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