Sobre a luta para manter o governo nas mãos dos homens livres.
“Logo se descobriu que a forma de um governo livre e os fins de um governo arbitrário não eram coisas de todo incompatíveis entre si.”
(Edmund Burke, Pensamentos sobre a causa dos presentes descontentamentos.)
É curioso como algumas palavras acumulam uma nuvem de significados positivos enquanto outras, semanticamente tão inócuas quanto aquelas, acabam carregando sobre seus ombros uma gama de más intenções.
Considere, por exemplo, a diferença de significação entre os termos “democracia” e “populismo”.
Você conhece alguma pessoa responsável que admitiria estar contra a democracia? Exceto uma pessoa multimilionária, que não precisasse ganhar mais dinheiro, ninguém se arriscaria a dizer isso. Porém, muitas pessoas declarar-se-ão anti-populistas com gosto. Essa discrepância é curiosa por diversos motivos.
Primeiramente, é uma evidência da resiliência quase darwiniana da palavra “democracia”. Na acirrada batalha das ideias por sua sobrevivência, “democracia” não apenas sobreviveu como prosperou. E isto se deu apesar do fato de que pensadores políticos como Platão e Aristóteles, passando por Cícero e chegando aos dos tempos modernos fossem profundamente suspeitos a seu respeito. Aristóteles entendia-a como a pior forma de governo, que necessariamente se degeneraria em oclocracia ou governo das massas, o qual não é governo nenhum.
No ensaio Federalista nº 10, James Madison sabidamente alertou para o fato histórico de que regimes democráticos haviam, “em geral, sido tão curtos em suas vidas quanto violentos em suas mortes.” “Políticos teoréticos”, ele escreveu – e seria difícil encontrar uma aplicação mais desprezível da palavra “teorético”-, até podem ter defendido a democracia, mas isso só ocorreu por causa de sua ignorância perigosa e utópica acerca da natureza humana. Para Madison, não estava claro ser a democracia uma guardiã confiável da Liberdade.
Não obstante, praticamente todo mundo quer associar a si mesmo com a palavra “democracia”. Regimes totalitários gostam de descreverem-se como a “República Democrática” do que quer que seja. Conservadores alardeiam as vantagens do “capitalismo democrático”. Planejadores centrais de todos os tipos avidamente implementam programas propagandeados como engrandecedores ou expansores da “democracia”. Até mesmo James Madison acabou por ladear-se a uma subespécie de democracia, ainda que uma filtrada pela influência moduladora de uma grande e diversificada população, bem como por um bem elaborado esquema de representação que aliviasse (embora Madison dissesse “excluísse”) a influência “do povo em sua capacidade coletiva.”
“Democracia”, resumidamente, é uma palavra elegíaca, aquilo que o filósofo prático Stephen Potter definiu, em outro contexto, como uma “palavra bonita”. E vale a pena notar, algo que Potter ter-nos-ia alertado de pronto, que as pessoas que as pronunciam deliciam-se em propagandearem-se a si mesmas como “pessoas bonitas,” além de geralmente serem assim consideradas por outras pessoas. Com efeito, os elementos de pertencimento a uma classe e de aprovação moral – os quais algum gênio resumiu como “sinalização de virtude” – são a chave para entender isso.
É bem o oposto com “populismo”. À primeira vista, isto parece estranho porque a palavra “populismo” ocupa, semanticamente, um espaço quase adjacente a “democracia”. “Democracia” significa “governo pelo demos,” o povo. Do mesmo modo, “Populismo,” segundo o The American Heritage Dictioanary, descreve “uma filosofia política dirigida para as necessidades das pessoas simples e que busca uma distribuição mais equitativa de qualidade de vida e poder” – ou seja, justamente o tipo de coisas que o povo, se fosse governar, buscaria.
Ocorre que, a bem da verdade, “populismo” é, na melhor das hipóteses, uma palavra ambivalente. Às vezes, é verdade, uma pessoa carismática consegue fazer sobreviver e até mesmo adornar o rótulo “populista” como uma auréola pessoal. Bernie Sanders conseguiu esta proeza entre os eco-conscientes, racialmente onívoros, não-estereotipados-por-gênero, anti-capitalistas beneficiários do capitalismo que compuseram o núcleo de seu eleitorado.
No entanto, sempre tive a impressão de que neste caso o termo “populista” fora encampado menos por Sanders ou seus apoiadores do que por seus rivais e pela mídia, em uma tentativa de fixá-lo na imaginação do povo como mais um dos diversos exemplos lamentáveis de candidatos-que-não-eram-Hillary-Clinton, sendo ela presumidamente popular mas não populista.
Com efeito, há ao menos dois modos de associação negativa contra os quais o termo “populista” deve se defender. O primeiro é a questão da demagogia: alguns intérpretes nos dizem que “populista” e “demagogo” são essencialmente sinônimos (embora eles raramente ressalvem que demagogos simplesmente significa “um líder popular,” como Péricles). A associação de demagogia e populismo descreve o que nós poderíamos chamar de aspecto de “comando-e-controle” do populismo. É dito que o líder populista abandona a razão e a moderação a fim de atiçar as paixões mais baixas e ctônicas de um povo semianalfabeto e espiritualmente raso.
O outro é a questão sobre o “solo fértil mas não edificante” do populacho sobre o qual o líder demagógico opera. Qualquer um que tenha visto os comentários sobre o Brexit, a campanha e os primeiros meses da administração Trump, ou a recente eleição francesa terá notado isso.
Considere, para ficar com apenas um exemplo, a frequência com que a palavra “ódio” e seus cognatos estão sendo empregadas para evocar as falhas psicológicas e morais tanto da multidão populista quanto de seus presumidos líderes. Em uma invectiva memorável e apocalíptica publicada nas primeiras horas de 9 de novembro de 2016, David Remnick, o editor do The New Yorker, alertou que o mandato de Trump representava “uma rebelião contra o próprio progressismo,” um “odioso ataque” contra os direitos civis das mulheres, negros, imigrantes, homossexuais e incontáveis outros. Outros comentaristas posteriores alertaram sobre nossos “tempos de ódio e cinismo”, sobre o tom “bruto, odioso e ressentido” da retórica de Trump, sobre “o ódio” não aplacado daqueles americanos que sentiam “terem sido deixados para trás”. “O ódio de Trump pode descambar em uma estrada tenebrosa” disse a CNN. “Por dentro do ódio e da impaciência de Trump – e sua súbita decisão de demitir Comey”, o The Washington Post. “Como o Ódio putrefato contra Comey Resultou em Sua Demissão”, o The New York Times.
Até há, pela imprensa, algumas concessões ocasionais de que o “ódio” diagnosticado pode ser compreensível, até justificável, mas nós somos deixados com a inconfundível impressão de que o fenômeno, em sua inteireza, é algo mal e irracional. Lemos nela referências ao ódio “que apodrece”. Ele conduz a decisões “súbitas”, ou seja, impulsivas. Diz ela também que o caminho para onde estamos sendo conduzidos pode ser “tenebroso” (Ah, como uma possibilidade pode ser rasteira: quando lemos que algo “pode ser” tenebroso, nós chegamos a pensar, como deveríamos, que este mesmo algo bem pode não o ser?)
O “Populismo” parece incapaz de escapar de associações com demagogia e corrupção moral. Assim como os fétidos ferimentos de Filoctetes, o mal cheiro é aparentemente incurável. Também pudera, há razões históricas e em abundância acerca da associação entre demagogia e populismo, como bem nos recordam os irmãos Tibério e Caio Graco, Padre Coughlin e o senador Huey Long.
Ainda assim, eu suspeito que, na presente situação, a associação aparentemente inseparável entre populismo e demagogia tem menos a ver com qualquer afinidade natural do que com seu ardiloso uso como rotulação retórica. O termo “Populismo”, é bom que se diga, está sendo brandido não tanto como um conceito descritivo senão como um termo deslegitimador. Acuse com sucesso alguém de simpatizar com o populismo e você conseguirá, gratuitamente e sem mais esforço, também imputar-lhe a pecha de demagogo e do que foi famosamente ridicularizado como bando “deplorável” e “imperdoável”. O sentimento de desprezo existencial é quase palpável.
Também o é o elemento de condescendência. Inseparável do diagnóstico de “populismo” vem a sugestão não apenas de incompetência mas também de uma rudimentaridade em parte estética e em parte moral do populista ou de seu apoiador. Por isso não deixa de ser curiosa a aversão visceral expressada pela opinião das elites pelos sinais de simpatia do povo por populistas. Quando Hillary Clinton acusou metade dos apoiadores de Donald Trump de serem um “bando de deploráveis”, “imperdoável”, e quando Barack Obama rotulou os eleitores republicanos que viviam em cidades pequenas de serem um pessoal “amargurado” que “se apega a armas ou religião ou que antipatiza com pessoas que não são como eles ou nutrem sentimentos anti-imigrantes ou anti-comércio”, o que eles expressaram foi antes uma repulsa condescendente do que sua mera discordância.
(Continua.)
02 de janeiro de 2018
Roger Kimball, crítico cultural norte-americano, é o editor da revista The New Criterion e autor de vário livros, dentre os quais, “Radicais nas Universidades – Como a Política Corrompeu o Ensino Superior nos Estados Unidos da América” e “Experimentos Contra a Realidade – O Destino da Cultura na Pós-Modernidade”.
Tradução: Filipe Catapan
É curioso como algumas palavras acumulam uma nuvem de significados positivos enquanto outras, semanticamente tão inócuas quanto aquelas, acabam carregando sobre seus ombros uma gama de más intenções.
Considere, por exemplo, a diferença de significação entre os termos “democracia” e “populismo”.
Você conhece alguma pessoa responsável que admitiria estar contra a democracia? Exceto uma pessoa multimilionária, que não precisasse ganhar mais dinheiro, ninguém se arriscaria a dizer isso. Porém, muitas pessoas declarar-se-ão anti-populistas com gosto. Essa discrepância é curiosa por diversos motivos.
Primeiramente, é uma evidência da resiliência quase darwiniana da palavra “democracia”. Na acirrada batalha das ideias por sua sobrevivência, “democracia” não apenas sobreviveu como prosperou. E isto se deu apesar do fato de que pensadores políticos como Platão e Aristóteles, passando por Cícero e chegando aos dos tempos modernos fossem profundamente suspeitos a seu respeito. Aristóteles entendia-a como a pior forma de governo, que necessariamente se degeneraria em oclocracia ou governo das massas, o qual não é governo nenhum.
No ensaio Federalista nº 10, James Madison sabidamente alertou para o fato histórico de que regimes democráticos haviam, “em geral, sido tão curtos em suas vidas quanto violentos em suas mortes.” “Políticos teoréticos”, ele escreveu – e seria difícil encontrar uma aplicação mais desprezível da palavra “teorético”-, até podem ter defendido a democracia, mas isso só ocorreu por causa de sua ignorância perigosa e utópica acerca da natureza humana. Para Madison, não estava claro ser a democracia uma guardiã confiável da Liberdade.
Não obstante, praticamente todo mundo quer associar a si mesmo com a palavra “democracia”. Regimes totalitários gostam de descreverem-se como a “República Democrática” do que quer que seja. Conservadores alardeiam as vantagens do “capitalismo democrático”. Planejadores centrais de todos os tipos avidamente implementam programas propagandeados como engrandecedores ou expansores da “democracia”. Até mesmo James Madison acabou por ladear-se a uma subespécie de democracia, ainda que uma filtrada pela influência moduladora de uma grande e diversificada população, bem como por um bem elaborado esquema de representação que aliviasse (embora Madison dissesse “excluísse”) a influência “do povo em sua capacidade coletiva.”
“Democracia”, resumidamente, é uma palavra elegíaca, aquilo que o filósofo prático Stephen Potter definiu, em outro contexto, como uma “palavra bonita”. E vale a pena notar, algo que Potter ter-nos-ia alertado de pronto, que as pessoas que as pronunciam deliciam-se em propagandearem-se a si mesmas como “pessoas bonitas,” além de geralmente serem assim consideradas por outras pessoas. Com efeito, os elementos de pertencimento a uma classe e de aprovação moral – os quais algum gênio resumiu como “sinalização de virtude” – são a chave para entender isso.
É bem o oposto com “populismo”. À primeira vista, isto parece estranho porque a palavra “populismo” ocupa, semanticamente, um espaço quase adjacente a “democracia”. “Democracia” significa “governo pelo demos,” o povo. Do mesmo modo, “Populismo,” segundo o The American Heritage Dictioanary, descreve “uma filosofia política dirigida para as necessidades das pessoas simples e que busca uma distribuição mais equitativa de qualidade de vida e poder” – ou seja, justamente o tipo de coisas que o povo, se fosse governar, buscaria.
Ocorre que, a bem da verdade, “populismo” é, na melhor das hipóteses, uma palavra ambivalente. Às vezes, é verdade, uma pessoa carismática consegue fazer sobreviver e até mesmo adornar o rótulo “populista” como uma auréola pessoal. Bernie Sanders conseguiu esta proeza entre os eco-conscientes, racialmente onívoros, não-estereotipados-por-gênero, anti-capitalistas beneficiários do capitalismo que compuseram o núcleo de seu eleitorado.
No entanto, sempre tive a impressão de que neste caso o termo “populista” fora encampado menos por Sanders ou seus apoiadores do que por seus rivais e pela mídia, em uma tentativa de fixá-lo na imaginação do povo como mais um dos diversos exemplos lamentáveis de candidatos-que-não-eram-Hillary-Clinton, sendo ela presumidamente popular mas não populista.
Com efeito, há ao menos dois modos de associação negativa contra os quais o termo “populista” deve se defender. O primeiro é a questão da demagogia: alguns intérpretes nos dizem que “populista” e “demagogo” são essencialmente sinônimos (embora eles raramente ressalvem que demagogos simplesmente significa “um líder popular,” como Péricles). A associação de demagogia e populismo descreve o que nós poderíamos chamar de aspecto de “comando-e-controle” do populismo. É dito que o líder populista abandona a razão e a moderação a fim de atiçar as paixões mais baixas e ctônicas de um povo semianalfabeto e espiritualmente raso.
O outro é a questão sobre o “solo fértil mas não edificante” do populacho sobre o qual o líder demagógico opera. Qualquer um que tenha visto os comentários sobre o Brexit, a campanha e os primeiros meses da administração Trump, ou a recente eleição francesa terá notado isso.
Considere, para ficar com apenas um exemplo, a frequência com que a palavra “ódio” e seus cognatos estão sendo empregadas para evocar as falhas psicológicas e morais tanto da multidão populista quanto de seus presumidos líderes. Em uma invectiva memorável e apocalíptica publicada nas primeiras horas de 9 de novembro de 2016, David Remnick, o editor do The New Yorker, alertou que o mandato de Trump representava “uma rebelião contra o próprio progressismo,” um “odioso ataque” contra os direitos civis das mulheres, negros, imigrantes, homossexuais e incontáveis outros. Outros comentaristas posteriores alertaram sobre nossos “tempos de ódio e cinismo”, sobre o tom “bruto, odioso e ressentido” da retórica de Trump, sobre “o ódio” não aplacado daqueles americanos que sentiam “terem sido deixados para trás”. “O ódio de Trump pode descambar em uma estrada tenebrosa” disse a CNN. “Por dentro do ódio e da impaciência de Trump – e sua súbita decisão de demitir Comey”, o The Washington Post. “Como o Ódio putrefato contra Comey Resultou em Sua Demissão”, o The New York Times.
Até há, pela imprensa, algumas concessões ocasionais de que o “ódio” diagnosticado pode ser compreensível, até justificável, mas nós somos deixados com a inconfundível impressão de que o fenômeno, em sua inteireza, é algo mal e irracional. Lemos nela referências ao ódio “que apodrece”. Ele conduz a decisões “súbitas”, ou seja, impulsivas. Diz ela também que o caminho para onde estamos sendo conduzidos pode ser “tenebroso” (Ah, como uma possibilidade pode ser rasteira: quando lemos que algo “pode ser” tenebroso, nós chegamos a pensar, como deveríamos, que este mesmo algo bem pode não o ser?)
O “Populismo” parece incapaz de escapar de associações com demagogia e corrupção moral. Assim como os fétidos ferimentos de Filoctetes, o mal cheiro é aparentemente incurável. Também pudera, há razões históricas e em abundância acerca da associação entre demagogia e populismo, como bem nos recordam os irmãos Tibério e Caio Graco, Padre Coughlin e o senador Huey Long.
Ainda assim, eu suspeito que, na presente situação, a associação aparentemente inseparável entre populismo e demagogia tem menos a ver com qualquer afinidade natural do que com seu ardiloso uso como rotulação retórica. O termo “Populismo”, é bom que se diga, está sendo brandido não tanto como um conceito descritivo senão como um termo deslegitimador. Acuse com sucesso alguém de simpatizar com o populismo e você conseguirá, gratuitamente e sem mais esforço, também imputar-lhe a pecha de demagogo e do que foi famosamente ridicularizado como bando “deplorável” e “imperdoável”. O sentimento de desprezo existencial é quase palpável.
Também o é o elemento de condescendência. Inseparável do diagnóstico de “populismo” vem a sugestão não apenas de incompetência mas também de uma rudimentaridade em parte estética e em parte moral do populista ou de seu apoiador. Por isso não deixa de ser curiosa a aversão visceral expressada pela opinião das elites pelos sinais de simpatia do povo por populistas. Quando Hillary Clinton acusou metade dos apoiadores de Donald Trump de serem um “bando de deploráveis”, “imperdoável”, e quando Barack Obama rotulou os eleitores republicanos que viviam em cidades pequenas de serem um pessoal “amargurado” que “se apega a armas ou religião ou que antipatiza com pessoas que não são como eles ou nutrem sentimentos anti-imigrantes ou anti-comércio”, o que eles expressaram foi antes uma repulsa condescendente do que sua mera discordância.
(Continua.)
02 de janeiro de 2018
Roger Kimball, crítico cultural norte-americano, é o editor da revista The New Criterion e autor de vário livros, dentre os quais, “Radicais nas Universidades – Como a Política Corrompeu o Ensino Superior nos Estados Unidos da América” e “Experimentos Contra a Realidade – O Destino da Cultura na Pós-Modernidade”.
Tradução: Filipe Catapan
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