"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

POPULISMO: UM BRADO DE LIBERDADE - PARTE 2



Eu acho que a primeira vez em que percebi que o ataque contra a simpatia por líderes populistas poderia ter um poderoso efeito político, moral e deslegitimador de classe foi quando eu estive em Londres em junho do ano passado para cobrir a votação do Brexit. Praticamente todo mundo que encontrei, de ministros do partido Tory a motoristas de táxi, de turistas a comerciantes, defendia a permanência da Inglaterra na União Européia. Quanto maiores os seus rendimentos e à medida que se avançava na escala social, maior a probabilidade de que seu interlocutor fosse a favor de permanecer integrado. E também mais pungente sua depreciação por aqueles argumentando a favor do Brexit. Diziam que estes seriam “cheios de ódio”, sim, mas também ignorantes, medrosos, xenofóbicos, e racistas.

Ocorre que eles não eram; não os que eu encontrei, em todo caso. Para quem era a favor da saída, o Brexit resumia-se em uma pergunta bem simples: “Quem é que manda aqui?” Ao fim e ao cabo, a fonte da soberania inglesa é o Parlamento, como tem sido o caso por séculos? Ou é Bruxelas, sede da União Europeia?

E é justamente a questão da titularidade da soberania, creio eu, que nos direciona para o coração daquilo que, nos últimos anos, tem sido promovido e criticado como o projeto populista.

Considere a Inglaterra. O Parlamento deve responder aos eleitores britânicos. Já a União Europeia deve responder para – a bem da verdade, si mesma. Com efeito, vale a pena fazermos uma pausa para lembrarmo-nos o quão profundamente não democrática é a União Européia. Seus comissários são apontados, não eleitos. Eles não podem ser destituídos de seus cargos por seus eleitores. Se a população votar contrariamente aos interesses dos comissários da UE em um referendo, ela simplesmente será submetida a outros referendos até que vote da maneira “correta”. A contabilidade da União Europeia nunca foi objeto de uma auditoria pública, apesar de a corrupção ali ser generalizada. No entanto, os agentes da UE detêm um poder extraordinário sobre as vidas daqueles que lhe estão sujeitos. Um comissário em Bruxelas pode impor a um proprietário de terras no País de Gales qual o tipo de batatas ele deve plantar em sua fazenda, como ele deve calcular o peso do produto que ele vende e a quem ele deve admitir em seu país. O comissário pode proibir “racismo” e “xenofobia” – definindo-os como ter “uma aversão” a pessoas com base em “raça, cor, descendência, religião ou crenças, ou, ainda, por origem nacional ou étnica” e especificar uma penalidade de “no mínimo” dois anos de aprisionamento pelas infrações. Ele pode, também, “legalmente suprimir,” como relatado pelo jornal londrino Telegraph, “as críticas políticas contra suas instituições e principais expoentes”, tornando-se, assim, não apenas fora do alcance de uma votação mas também da crítica pública.

A situação é um pouco diferente nos Estados Unidos. Chegarei lá mais adiante. Agora, é importante notar até onde o metabolismo dessa indulgência política foi antecipada por Alexis de Tocqueville em suas famosas passagens sobre “o despotismo democrático” no livro Democracia na América. Diferentemente do despotismo de antanho, este alótropo moderno não tiraniza sobre o homem, mas infantiliza-o. E faz isso promulgando leis e regulamentos cada vez mais opressivos, os quais passam a alcançar cada aspecto da vida quotidiana do cidadão, dificultando sua iniciativa individual, obstruindo sua independência, sufocando sua originalidade, homogeneizando sua individualidade. Este poder, disse Tocqueville, “estende seus braços sobre a sociedade como um todo.”

“Ele não acaba com a determinação do indivíduo, mas a arrefece, desvia-a e a dirige. Ele raramente força alguém a agir, mas constantemente opõe-se às ações de quem quer que seja. Ele não destrói, ela previne que as coisas surjam. Ele não tiraniza, ele dificulta, compromete, debilita, extingue, atordoa e finalmente reduz cada nação a não ser nada mais do que um rebanho de animais tímidos e de tração cujo pastor é o governo.”

A análise de Tocqueville levou muitos observadores a concluir que o vilão neste drama é o Estado. No entanto, o filósofo político James Burnham, ainda enquanto escrevia, na década de 1940, o livro The Managerial Revolution, percebeu que o verdadeiro vilão não era o Estado em si mas sim a burocracia que o mantinha e gerenciava. É fácil ridicularizar os “aspones” (apparatchik) que povoam a estrutura do governo. Por isso James H. Boren astutamente escreveu que “as mais nobres batalhas humanas são aquelas nas quais burocratas dedicados, imbuídos do espírito de inação dinâmica, lutaram para proteger os rompantes de sua não-responsividade criativa das arremetidas de cidadãos comuns que ousaram demandar ações em seu favor.” O potencial cômico deste atoleiro, contudo, não deveria nos cegar para a natureza ameaçadora do fenômeno. Com efeito, ele representa um caso de estudo sobre a verdade comum segundo a qual o prepóstero e o mal-intencionado geralmente se confundem. O pastor sobre quem Tocqueville escreveu era, em verdade, uma congregação de pastores, um clube de gerentes que, à guisa de cumprir os deveres do Estado, age em sua própria vantagem e gradualmente se torna uma elite autoperpetuante que arroga para si o poder sobre os controles da sociedade.

Esmiuçar tal intrujice foi o foco do ensaio: “James Burnham’s Managerial Elite”, de Julius Krein, publicado no volume inaugural da revista American Affairs. “Embora a elite gerencial use o Estado como um instrumento para adquirir poder”, aponta Krein, “o verdadeiro inimigo não é o Estado mas sim a separação gerencial entre poder político e econômico e o contrato social liberal”.

Esta separação entre o poder real da sociedade e sua vida econômica e política torna a elite gerencial intocável. E isso, Burnham percebeu, não se pode atribuir nem ao progressismo nem ao conservadorismo, mas sim a forças subjacentes que engolfam ambos. “A contradição do conservadorismo contemporâneo,” escreveu Krein,

“é que ele é uma tentativa de restaurar a cultura e a política do capitalismo burguês enquanto acelera a planificação da economia. Por falhar em perceber esta contradição, “muito da doutrina conservadora está, se não totalmente falida, obviamente, cada vez mais ultrapassada” como Burnham escreveu em 1972. Desde então ela somente tem passado de obsolescente para contraprodutiva. Na situação em que nos encontramos, expandir a “liberdade de mercado” não tem mais nada a ver com o capitalismo americano clássico. Trata-se, simplesmente, de avançar na emancipação da elite gerencial de quaisquer obrigações para a comunidade política. Da mesma forma, promover “democracia” como um princípio abstrato e universalista tão somente serve para debilitar a soberania do povo americano, na medida em que se rejeita que seus interesses nacionais sejam fundamento legítimo para atuação do Estado em sua política externa.”

A soberania, percebeu Burnham, estava migrando dos parlamentos para o que ele denominou “agências administrativas” que cada vez mais são as sedes do poder real e, como tais, “proclamam as regras, fazem as leis, baixam os decretos.” Desde o começo da década de 1940, Burnham já escrevia que

“’As Leis’, hoje, nos Estados Unidos… não estão mais sendo feitas pelo Congresso, mas pela NLRB, SEC, ICC, AAA, TVA, FTC, FCC, o Escritório de Gerenciamento de Produção (que nome revelador!), e outras ‘agências executivas’ importantes.”

Perceba que Burnham escreveu isso décadas antes do advento da EPA, HUD, CFPB, FSOC, do Departamento de Educação e do resto da sopa de letrinhas administrativa que nos governa nos EUA hoje.

Estou convicto de que o problema da soberania, ou melhor, daquilo a que podemos chamar de localização da soberania, desempenhou um papel de destaque na ascensão do fenômeno que descrevemos como “populismo” tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. Primeiramente, a questão sobre a soberania em si, sobre quem governa, está por trás da rebelião contra o politicamente correto e o moralmente intrusivo que são características tão notáveis quanto desfigurantes de nossa sociedade cada vez mais burocrática. O cada vez mais asfixiante e tocquevilliano cobertor de regulamentações tem tido efeitos práticos e econômicos de ampla envergadura, sufocando o empreendedorismo e dificultando toda e qualquer inovação na produção.

No entanto, é possível que seus efeitos mais profundos sejam espirituais ou psicológicos. Os diversos ataques contra a liberdade de expressão nos campi de universidades, a exigência de “espaços seguros” e a prevenção contra “palavras-gatilho” ou “micro-agressões” no mundo da moda (chapéus mexicanos, fantasias de Halloween ofensivas, etc.) são parte desta ditadura do politicamente correto. No livro O Caminho para a Servidão, Friedrich Hayek afirma que um dos “muitos pontos” de sua tese foi sobre “a mudança psicológica,” a “alteração do caráter das pessoas” que resulta do aumento do controle governamental. Essa alteração envolve um processo de amolecimento, extenuação, até mesmo infantilização: uma troca dos desafios da liberdade e auto-confiança – os desafios, que fique claro, da idade adulta – pelos prazeres infantis da dependência. Max Weber falou desta situação dos “Ordnungsmenschen”, homens que haviam se tornado cada vez mais dependentes de uma ordem imposta a eles de cima. Romper com esse movimento fica cada vez mais e mais difícil quanto mais habituado à dependência o povo se torna. Neste sentido, o que tem sido descrito como uma insurreição populista contra o politicamente correto não deixa de ser simplesmente uma reafirmação de independência, uma reivindicação do que vem a ser uma das virtudes mais incomuns, o senso comum.


(Continua.)

02 de janeiro de 2018
Roger Kimball, crítico cultural norte-americano, é o editor da revista The New Criterion e autor de vário livros, dentre os quais, “Radicais nas Universidades – Como a Política Corrompeu o Ensino Superior nos Estados Unidos da América” e “Experimentos Contra a Realidade – O Destino da Cultura na Pós-Modernidade”.
Tradução: Filipe Catapan

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