Ficar sem palavras é a pior coisa que pode acontecer a quem vive delas. Mas há sempre uma primeira vez.
Amigos sábios tinham feito um ultimato: ou eu assistia a "O Ato de Matar", o premiado documentário de Joshua Oppenheimer, ou eles cortavam relações comigo.
Cedi. Tinham razão. É talvez a mais radical e perturbadora experiência cinematográfica dos meus últimos longos anos.
Cenário: Indonésia, dias de hoje. Tema: as matanças organizadas por milícias pró-Suharto depois do golpe militar de 1965 para limpar o país de "comunistas" (um termo suficientemente vago que tanto se aplica a militantes marxistas como a imigrantes chineses).
Mas o melhor de tudo são os atores principais: nada menos que os próprios carrascos, hoje envelhecidos, e que partilham com Oppenheimer lembranças e técnicas com uma naturalidade que está para lá do bem e do mal. E, quando digo "atores", a palavra é exata: eles não apenas falam abertamente dos seus crimes como encenam os crimes para explicar melhor.
O caso de Anwar Congo merece destaque. No início do documentário, encontramos a lenda (tradução: mais de mil vítimas). E o que impressiona no velho Anwar é a sua alegria –não a alegria de viver, mas a alegria que sente na evocação da matança.
Eu sei, eu sei: a palavra "mal", hoje, foi abolida do nosso vocabulário covarde. O mal nasce da pobreza, da ignorância, da doença. Ou, melhor ainda, é um resquício lamentável de fantasias religiosas.
Para Anwar, o mal é uma afirmação da existência. Os detratores das milícias gostam de usar a palavra "gangsters". Mas Anwar gosta dessa palavra: "gangster", diz-nos ele com a sabedoria de um filólogo, significa "homem livre". E os "homens livres" criam as suas próprias leis.
Anwar é uma espécie de existencialista do açougue que aprendeu tudo com o cinema americano. A pose, os ternos, os gestos. E, claro, as técnicas.
Com ele visitamos o terraço de uma casa que servia de matadouro nos anos loucos de 1965 e 1966. Era uma terrível sujidade –o sangue, o cheiro. Quem aguentava aquilo?
Poucos. Ninguém. Os nazistas, que eram os nazistas, só optaram pelas câmeras de gás porque os fuzilamentos em massa andavam a perturbar a saúde psíquica dos soldados do Reich.
Então o nosso "gangster" começou a estrangular com arame, o método mais barato e eficaz. Ele próprio, com um amigo, mostra-nos como a coisa funcionava. É tão fácil como andar de bicicleta –e ele conta tudo como quem fala de uma bicicleta.
E a consciência? Haverá uma consciência que tudo vigia e condena?
Boa pergunta. Uma pergunta que os carrascos fazem uns aos outros. O nosso Anwar, apesar da alegria, confessa a um deles que ainda tem pesadelos. O outro desvaloriza: diz-lhe que é uma questão de nervos mas que um bom médico cura tudo.
Depois, em momento que parece ter sido escrito por Dostoiévski "lui même", ainda aconselha: o segredo de matar com a consciência tranquila é encontrar uma boa desculpa para o ato.
E para quem pensa que existem leis internacionais –ou, jocosamente, "direitos humanos"– que impedem esse ato, um dos carrascos decide filosofar: a Convenção de Genebra foi escrita por vencedores. Ali, na Indonésia, eles são os vencedores. O código que interessa é outro: a Convenção de Jacarta, digamos.
Era Adam Smith, na sua "Teoria dos Sentimentos Morais", quem dizia que só somos verdadeiramente humanos quando temos a capacidade de nos imaginarmos no lugar do outro.
"O Ato de Matar" apresenta-nos o resultado dessa "falha de imaginação": a transformação do ato de matar em simples rotina cotidiana. Como escovar os dentes, comer, fumar.
Terminei o documentário sem palavras. E depois, consultando as notícias do dia, lá encontrei as polêmicas do momento. Como, por exemplo, as acusações pungentes de que os filmes de James Bond são "sexistas" e merecem boicote.
Em condições normais, tanta estupidez teria o dom de me enervar. À luz do documentário, olho para elas com uma brandura paternal. As cabecinhas vazias do Ocidente que perdem tempo com essas coisas são, afinal, crianças brincando no jardim.
30 de setembro de 2018
João Pereira Coutinho, Folha de SP
Amigos sábios tinham feito um ultimato: ou eu assistia a "O Ato de Matar", o premiado documentário de Joshua Oppenheimer, ou eles cortavam relações comigo.
Cedi. Tinham razão. É talvez a mais radical e perturbadora experiência cinematográfica dos meus últimos longos anos.
Cenário: Indonésia, dias de hoje. Tema: as matanças organizadas por milícias pró-Suharto depois do golpe militar de 1965 para limpar o país de "comunistas" (um termo suficientemente vago que tanto se aplica a militantes marxistas como a imigrantes chineses).
Mas o melhor de tudo são os atores principais: nada menos que os próprios carrascos, hoje envelhecidos, e que partilham com Oppenheimer lembranças e técnicas com uma naturalidade que está para lá do bem e do mal. E, quando digo "atores", a palavra é exata: eles não apenas falam abertamente dos seus crimes como encenam os crimes para explicar melhor.
O caso de Anwar Congo merece destaque. No início do documentário, encontramos a lenda (tradução: mais de mil vítimas). E o que impressiona no velho Anwar é a sua alegria –não a alegria de viver, mas a alegria que sente na evocação da matança.
Eu sei, eu sei: a palavra "mal", hoje, foi abolida do nosso vocabulário covarde. O mal nasce da pobreza, da ignorância, da doença. Ou, melhor ainda, é um resquício lamentável de fantasias religiosas.
Para Anwar, o mal é uma afirmação da existência. Os detratores das milícias gostam de usar a palavra "gangsters". Mas Anwar gosta dessa palavra: "gangster", diz-nos ele com a sabedoria de um filólogo, significa "homem livre". E os "homens livres" criam as suas próprias leis.
Anwar é uma espécie de existencialista do açougue que aprendeu tudo com o cinema americano. A pose, os ternos, os gestos. E, claro, as técnicas.
Com ele visitamos o terraço de uma casa que servia de matadouro nos anos loucos de 1965 e 1966. Era uma terrível sujidade –o sangue, o cheiro. Quem aguentava aquilo?
Poucos. Ninguém. Os nazistas, que eram os nazistas, só optaram pelas câmeras de gás porque os fuzilamentos em massa andavam a perturbar a saúde psíquica dos soldados do Reich.
Então o nosso "gangster" começou a estrangular com arame, o método mais barato e eficaz. Ele próprio, com um amigo, mostra-nos como a coisa funcionava. É tão fácil como andar de bicicleta –e ele conta tudo como quem fala de uma bicicleta.
E a consciência? Haverá uma consciência que tudo vigia e condena?
Boa pergunta. Uma pergunta que os carrascos fazem uns aos outros. O nosso Anwar, apesar da alegria, confessa a um deles que ainda tem pesadelos. O outro desvaloriza: diz-lhe que é uma questão de nervos mas que um bom médico cura tudo.
Depois, em momento que parece ter sido escrito por Dostoiévski "lui même", ainda aconselha: o segredo de matar com a consciência tranquila é encontrar uma boa desculpa para o ato.
E para quem pensa que existem leis internacionais –ou, jocosamente, "direitos humanos"– que impedem esse ato, um dos carrascos decide filosofar: a Convenção de Genebra foi escrita por vencedores. Ali, na Indonésia, eles são os vencedores. O código que interessa é outro: a Convenção de Jacarta, digamos.
Era Adam Smith, na sua "Teoria dos Sentimentos Morais", quem dizia que só somos verdadeiramente humanos quando temos a capacidade de nos imaginarmos no lugar do outro.
"O Ato de Matar" apresenta-nos o resultado dessa "falha de imaginação": a transformação do ato de matar em simples rotina cotidiana. Como escovar os dentes, comer, fumar.
Terminei o documentário sem palavras. E depois, consultando as notícias do dia, lá encontrei as polêmicas do momento. Como, por exemplo, as acusações pungentes de que os filmes de James Bond são "sexistas" e merecem boicote.
Em condições normais, tanta estupidez teria o dom de me enervar. À luz do documentário, olho para elas com uma brandura paternal. As cabecinhas vazias do Ocidente que perdem tempo com essas coisas são, afinal, crianças brincando no jardim.
30 de setembro de 2018
João Pereira Coutinho, Folha de SP
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